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Seis poemas de 'Ao jeito dos bichos caçados', novo livro de Otávio Campos

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sequência

Você consegue contar
a história do personagem
que não está
repare que este não
é um filme sobre o espaço
repare que este não
é um filme sobre a ausência
isto é sobre
o amor & suas mutações
químicas quando exposto
ao sol também sobre
corridas
pescas submarinas cidades
subterrâneas
navios abandonados portos
desconhecidos
o personagem que não busca
a redenção & não está como
a arte sacra
no séc. xix ou um simulacro
desta sequência numa fotografia
Santa Teresa às quatro da tarde

**

selva

Já me acostuma
silêncio
escrever seu nome
exercício
desleal você
acredita na palavra
desleal

**

i encontro com usuário de aplicativo

Duro o músculo
in tempo na música da edição
duro tão duro
sinto cada pedaço do
músculo a apertar os meus
viva: Ele que bate e
vibra Eu desconfio muito
dos leitores de poesia
que duram este tempo
Tudo tão duro
o lábio e os meus lábios
deixa a música e fala
o motivo do pornô
ou se escuta Oasis
tão equivocado como voltar
No minuto 3:43
quando já esperava o fim
in tempo na música da edição
Quando você se sentir
sozinho depois do filme
E as respostas
duro tão duro
monta no meu corpo como
monta num cavalo pelos
pelos a cela enorme
A cortina para que não saia
o cheiro do cigarro
o desejo em cima da carne
Músculo tão músculo
por baixo da minha perna
in tempo as respostas honey
E te comer sem que te esgote
Rijo o músculo
O desejo imenso do rito

**

como utilizar uma arma de corte

Entre a beira e o abismo existem ao menos dois pontos e em nenhum deles você deve (primeiro porque não é possível) se segurar. Se você por aca­so se depara com um sofá e com uma tela pousada dois metros imediatamente diante dele, você pri­meiro se preocupa com a impossibilidade de cons­truir a imagem de uma casa, depois decide se se senta encara os rasgos da tela ou se continua de pé e desenha com os olhos a narrativa de uma ex­plosão. Aos tipos que escolheram se sentar: sentir está na tela ou vocês arranham à unha a capa do estofado? Se você por acaso se depara com uma lâmina você primeiro se corta com calma testando a precisão do metal por quanto tempo até pedir ser atravessado por todos os lados? As relações entre dor e prazer já há algum tempo deixaram de ser estudadas e aos que decidiram permanecer cabe a dúvida se é maior o desconforto em rasgar a pele do peito ou costurar a pele rasgada. Acompanha esta obra um breve manual sobre o desejo e outras armas de corte. É o que está exposto.

**

a última experiência dos nossos tempos

A última experiência dos
nossos tempos é próprio
deles que as canções se
tornem públicas do modo
que foram nos tempos
de outros que não sofreram
com a fome & a falta
da experiência de contar
como confunde esta peça
que não é minha que não
está pronta é feita de tempo
desfeita com ele só assim
essa peça é uma canção
se não como saber
o que disso é um relato
isto é um relato
isto é uma notícia
uma flecha ou um furo
se por acaso as canções
se tornarem públicas
como prometem tempos
nossos de agora
em que a experiência
do nada se soma à experiência
do nada me levanto tarde
é próprio da falta
dos nossos tempos
que nos levantemos tarde
caso voltem as canções
a ser públicas não seria
próprio evitar o dia [inenarrável]
se aquelas palavras por
acaso se chocam no discurso
de nos acordar
tarde no local público
dentro da casa o rádio
que não é meu mas existe
o que toco com o que falo
é informação ou experiência
mas a canção que toca
no rádio enquanto eu saio
deixo sozinho no indizível
você canta como cantasse
um ato público
é próprio da violência
que sigamos calados
o corpo limite
o que te atravessa

**

ao arquiteto

Construo toda noite
o poema que não mata
nada & quando
te digo que construo
o poema você tenta
me convencer que um poema
é exatamente o oposto de um
edifício sua capacidade
de síntese as arestas incisivas
como uma navalha por outro
lado os edifícios funcionam
quase que em exclusivo
para aquilo porque conhecem
o mundo você pensa
isso de um poema ou você
habita as cidades que desenha
no chão & depois pisa
com os dedos arregalados
de fúria
& pathos
pequena
os edifícios também
são feitos para ruir

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OTÁVIO CAMPOS (MG, 1991) é editor, poeta e professor. Publicou os livros Distância (2013), Os peixes são tristes nas fotografias (2016), Outros tipos de disparos (2016) e Ao jeito dos bichos caçados (Portugal, 2017; Brasil, 2018).




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