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um século para se ver de olhos fechados - poemas de Marco Aurélio de Souza

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E foi aí que a patrulha me pegou

Quando terroristas afegãos
Degolaram jornalistas da Turquia
Quando extremistas da Síria
Foderam raivosos meninas egípcias
Quando o ditador da Coréia
Executou caprichoso outro ativista civil
Solidário eu troquei de avatar
Sendo saudado um soldado nessa luta.

E quando coronéis do Mato Grosso
Meteram bala na família dos sem-terra
Também lutei pela dignidade agrária
Trocando a foto do perfil e
Paralelo ao gesto, a vida
Parecia estar correndo muito bem.

Até que um dia
Polícias do Rio balearam homem negro inocente
No Morro dos Prazeres
Enquanto jovens fascistas
Incineravam mendigos no centro velho de São Paulo
E, num mesmo instante,
O deputado da bancada evangélica
Pregou enlouquecido em Brasília
Um holocausto gay:

[Era o caos quem me tomava e
Estarrecido pela conjunção dos fatos
Hesitei um instante na escolha das causas
E bandeiras, esquecendo até
Do quem eu era
E do qual era no mundo o meu lugar].

No vagar do juízo
- Dedos em riste -
Ficou o avatar empoeirado
Em descompasso com o vento das ideias

E foi aí que a patrulha me pegou.








A margem feia

Precoce a pele da flor preta está rugosa
Firme é o gracejo na paisagem de arrebol
O caule forma de um espinho, tenta formosa
Brotar na lama de escanteio, ausente o sol.

Feras travessam pelo mundo, geram ruídos
Carregam gentes de outro tipo, em bonança
Olhos flamejam quando avistam feia pança
Que se escancara no agora e na lembrança.

Sua semente vai tão junta quanto o medo
Grávida enfrenta ferroadas, não se refreia
No acostamento do pecado, à margem feia
Roubar seu pólen vem a vespa muito cedo.

Um dinossauro de metal ruge e bafeja
Desmonta o mundo revelando a ferida
Longo é o sofrimento embora a sua lida
Seja tão curta quanto a grana que almeja








Conselho de classe

VIADO: é o recado
Que os meninos me atiram
Junto à mesa.
O vento carrega os papéis
Sem sobreaviso.
“Nos dias de chuva,
Ninguém consegue trabalhar”.

No pátio uma sirene
Perfura a palidez da tarde
Conspirando em silêncio
Com a tempestade
Que segue varrendo
A solidez dos ideais.

Depois do lanche
A classe eufórica me afoga
Com seus gritos -
Dentro do peito, porém
Ausculto uma ressaca
Inaudível
Que faz tremer o corpo
Inteiro ao pavor
Da criação.








Das condições do tempo

Um teórico eslavo me alerta
Às condições do nosso tempo
Em uma rede social
:
A opressão esmaga
O ódio se converte numa lei
Refugiados se afogam no cabo
Da boa esperança
Um muro alto nos divide a todos
E a guerra é nada menos que
Iminente.

Confesso sentir um quê de culpa por nascer assim
Com os fundilhos virados para a lua
Na ilha próspera da classe média
Branca, indolente
E subtropical.

Penso em montar um mutirão de consciências pesadas
Para varrer a sujeira que toma conta
Do hodierno mundo capitalista
E sinto mesmo o bater mais forte
Dos bons augúrios
No coração.

Lamentavelmente
Num piscar de olhos a esperança
Se encolhe em meu peito
Sitiada pela dúzia de latinhas
Que tomei
E pelo incenso do meu fumo
Que nubla na alma a nobreza
Do gesto vindouro
Mediante nova e mais urgente constatação
Das condições do nosso tempo
:
No subúrbio do planeta ainda é verão mas
À revelia dos costumes
Aqui na terra dos pinheirais
Um termostato natural descansa preguiçoso
Na casa amena dos dezoito graus celsius –
Novos teóricos pipocam pela rede social e
No interior da geladeira bem munida
Restam ainda seis latinhas de cerveja
Além da culpa adormecida que vai bem
De sobremesa. 








Longe de mim a perfeição

Deixe-me dizer que as novidades
Sofrem de Alzheimer, Piva
E que o novo século gagueja
As dicções do anterior –
Continua nos enrabando
Com retrospectivas de fim de ano
E programas domingueiros na TV.
Sabemos, portanto
Que tudo irá pelos ares
Antes, muito antes
Que a multidão de zumbis
Enfeitiçados pelo flúor dos governos
& açúcares da Coca-Cola
Descubra em ti alguma razão.

É certo que andamos
Em círculo & ruína
Embora os mendigos, agora
Reclamem wi-fi.
Vez ou outra, porém,
Desfila ainda um foguete caralhudo
A espirrar precoce a ejaculação
Dos ditadores juvenis
Sobre os portais em rede onde os
Pró-Cuba &anti-Cuba
Tecem comentários raivosos
Vazando seu corrimento & desespero –
De modo que cagam e andam
Pra ti & pras tuas macumbas
:
O grupo das revelações segue tosando
Suas rimas num pet shop de luxo
Enquanto teu uivo faz eco nas praças
E cracolândias sitiadas.

[E já estamos todos cansados
Daqueles que sugam sem fome
O seio das musas dissimuladas
Que velam teu corpo ressurreto

& disso também eu me canso
& dos que falam ao povo
& dos que falam pelo povo
& dos que enxergam na palavra povo
Desdobramentos da palavra Deus]

Longe de mim a perfeição, Piva
Mas o ruído das ruas me ensurdece
Com seu mantra de sacrifício
E civilização
E até os professores ginasiais
Andam me cobrando posição
Dentro do jogo
& não sei mais como dizer
& repetir
Que já faz tempo que perdi a paciência
Que estou me lixando para a farsa
Das encenações coletivas
& que não decoro mais nada
& que se fodam todos vocês.

Não, Piva, teus olhos não deixam
De arder enquanto a culpa
Resistir ao milênio.
Não, Piva, o XXI não vai lhe dar razão
Conquanto o teu nome circule nos becos
Feito um farol
& o teu verso seja sempre
A mais cotada epígrafe
Da próxima antologia de poetas gays
Patrocinada pelo banco Itaú.

& nisso eles verão a santidade do poeta
& nisso eles farão alguma tese sobre ti
& nisso eles verão um vício monstruoso
Alguma sorte & alguma culpa
Alguma estranha urgência
& a sua degeneração.







_______________________ 
Marco Aurélio de Souza(1989, Rio Negro/PR) é autor de Travessia (Kotter editorial, 2017, poemas), além de dois romances. Doutorando em Estudos Literários (UFPR), publica em diversos periódicos e participa, entre outras, das antologias "29 de Abril: o verso da violência" (Patuá, 2015, poemas) e "15 Formas Breves" (Biblioteca Pública do Paraná, 2017, contos). Os poemas selecionados integram o livro "Anjo Voraz", vencedor do I Concurso Literário Editora Benfazeja, com publicação prevista para o primeiro semestre de 2018. Contato: [aurelio.as25@yahoo.com.br].


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