No café da manhã, ao abrir uma fruta vi – na carne de suco e massa, a farpa que um dia julguei extirpada à faca.
Eu, suspenso por um fio, pensava:
não se extrai a fórceps esta falha;
a fórceps se extrai só a falha ao mundo.
Reinventar o gesto?
A palavra gasta?
Em vão.
A maçã cravada nas costas fica.
(Para metabolizar chaga e gesto cabe ao homem alvejar o claro no escuro.)
Ouro de ossos, gema esmeralda.
O tempo que drena como água nas estrias dos meus dedos, que adensa dunas à beira-mar, desidrata flores, devora a carne do peixe e contempla o esqueleto, será o mesmo que lambe os pés nus colados à massa pastosa de areia, entregues a ondas de espuma, choque e refluxo?
Do azul rasgado de lenta brancura, olhos de contas nacaradas seguem a linha luzente da praia de ouro em pó.
Uma mulher, água até a borda dos seios nus, estende os braços à rebentação.
Sopro impregnado de maresia, a gaivota ataca e emerge e desenha um arco prateado de sol.
E retomo o caminho – não tenho parada
– atento ao zumbido de moscas e abelhas.
Aceitarei do dia a noite insone.
Mãos de rosa tocarão meu sonho à flor da pele do instinto.
Com a sombra do ontem hoje lavrarei a partícula cadente do pensamento.
Como um deus eternamente humano, darei cor ao pássaro impalpável transpirando perfume de terra molhada e pulsando vida – esta palavra predatória.
Aceitarei a noite insone como o sono futuro.
Suscetível como a cambraia, o mundo ilumino.
Massa de prédios adormecidos acima de uma ramagem que ondeia suave ao vento da madrugada.
Em minhas mãos o momento evasivo.
No quarto tecido de cinza, um trinado
– como um grão de sol,
dissipou a sombra dos meus olhos e o chiado dos meus ouvidos.
Enfileiradas luas de vapor de sódio, ao canto um ramo é o bastante.
Que nem o inferno, nem coisa alguma, deve vencer a esperança da folha nova, da semente no rastro da luz.
Ao canto basta o desprendimento.
Em um céu carente de estrelas minha lanterna oscila.
Depois de suor e lágrimas;
depois de contar os segundos de um minuto de silêncio;
luz de primavera é o paraíso.
Corrente de ar luminoso, luz da lua refletida na simples colcha de casal, são o paraíso.
Chuvas de primavera frutificam sobre a seca enraizada de inverno. Cada artéria concorre com a geração da flor; o ar renova brotos e botões; passarinhos cantam ao sol da noite: encantam o drama humano.
A quem chegarão tais folhas gravadas e adensadas na duração a desdobrar-se extrato do incerto grão?
Dedicado ao ofício do momento, mãos impregnadas de sol e noite, sexo ébrio de mosto, jogo lúdico à espreita da incompletude inseparável minha e sua– a quem lâmina pluma da palavra, silêncio seguindo morte e sexo?
A esse quem a investidura do risco da palavra.
(Só a troca (amor) nos pertence).
Ricardo Carranza (São Paulo, 1953) é escritor, vive e trabalha em São Paulo e o tempo tem enriquecido sua curiosidade de viver. Publicou em Antologias de Concursos Nacionais – SCORTECCI, SESC DF, revistas de literatura - CULT, e sites de Poesia e Literatura – Zunái, Stéphanos e Oficina Literária. Livros de Poesia publicados: Sexteto, Edição do Autor, SP, 2010; A Flor Empírica, Edição do autor, SP, 2011; Dramas, Editora G&C Arquitectônica Ltda., SP, 2012; Sebo 2009-2016, inédito. Sóis, 2014-2016, inédito; Pastiche, 2016, Inédito. Contos: A comédia dos erros, inédito, 2011/2015 – finalista do Prêmio SESC de Literatura, 2015; Anacronismos, inédito, 2015/2016; Cadernos de Insônia: esboços de poesia, contos, reflexões, sonhos e fragmentos porco-espinho desde 2009.