. dedicatória
dedico todos meus textos aos analfabetos
aos disléxicos e cegos
aos dementes e bárbaros
aos bêbados e gagos
aos surdos,
dedico meus berros
ignorantes,
não fiquem emputecidos
a vocês reservo poemas falsos
e sentimentos parcos
linhas tão mal escritas
só podem ser compreendidas
por quem anda pelo acostamento da vida.
. voz
vou abrir minha boca
soltar essa voz enlatada
presa entre insegurança e cigarras
há tanto tempo
esganiçada
ansiosa por ser liberta
já calou um milhão de palavras
tantas páginas
viraram fumaça
agora brigam emaranhadas
pra sair em disparada
fina
feminina
tímida
afiada
voz calada
não aceita mais ser ignorada
depois de tanta estrada
onde sempre esteve
descalça.
. obsessão
a ordem da casa
disfarça minha desordem interior
tentativa infinita de arrumar
o caos que nos rege
perco todos os dias uma batalha
o pó se enfia nas gretas
embaixo das unhas
no cheiro do cabelo
denuncia um fracasso cotidiano
o pó é a minúscula parte
desestabilizadora de um amplo universo
de brancura e aparências e fotos lustrosas
gruda não sai entra pelas narinas colando
no corpo real aquele que ninguém deseja ver
gorduras ossos sangue muco tendões
esse mesmo que rói nosso sono tranquilo
medo oculto da roedura final
o pó vencerá
pó seremos.
. ainda te amo
não tivemos filhos
não viajamos
não ficamos ricos
só nos amamos
amargurados de dores passadas
enrolados feito lã
sob um edredom de fracassos
fomos os melhores em ser pior
únicos amores avessos
aos contos da vida real
presos no felizes para sempre
do encontro que nunca
se perdeu.
. juízo ao final
estamos sozinhos
não há nada
nem ninguém
do lado de fora
o telefone não toca
o celularnão apita
subexistimos esfacelados
ao nosso apocalipse particular
da parede para dentro
comemos ração
bebemos soro
dormimos nus
os poucos que ainda restam
não sabem o que passamos
olham através de uma lente
e acham que somos exemplo de sobrevivência
não somos nada
somos pó e merda
somos esquecidos
por Deus
vivemos há tempo demais
sob os escombros
para saber que o socorro
nunca virá.
. verme
queria ter dentes bons de comer parede
pra matar essa lombriga que tenho de terra
cimento gesso pedra tijolo
até viga de aço me saliva a boca
é fome que pede concretude
segurança de engolir o mundo
antes que seja eu a ser comida
pelos bichos que aguardam
essa barriga farta de fraquezas
dentes bons e caminhos pedregulhosos
pra saciar essa vontade comestível
de ser matéria
permanente.
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Viviane de Freitasé uma pessoa que escreve para sobreviver. Especializada em literatura pela PUC-SP, é jornalista, redatora e mestre em Divulgação Cultural pela Unicamp e autora do livro Poesia de Geladeira (2017), publicado pela Editora Moinhos. Publica seus textos no blog https://vivianedefreitas.wordpress.com