Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

2 contos de Tere Tavares

$
0
0
Navegadores, óleo sobre tela, 2010




Verted’ouro

Não és bom, nem és mau: és triste e humano...
Vives ansiando, em maldições e preces,
Como se a arder no coração tivesses
O tumulto e o clamor de um largo oceano.
(Olavo Bilac)

O sol continua a sumir por entre as pedras, com seus raios quase entristecidos. As ondas se esparramam como anjos incansáveis. A mulher com nome de flor ou de santa tinha a voz intensa, breve, e, principalmente risonha. Assemelhava-se a uma evolução musical de suave atmosfera.  Não bastasse o canto, tinha o encantamento, o pleno exercício do querer, aceitando o que não fora possível mudar. Pensava com o sentimento.

Seria um estado de beatitude elaborada para o inestimável memorial das criaturas iluminadas. Descrevia o que sentia enquanto a outra forma de si mesma escrevia o que pensava. Quando tudo cessava era o mirar do seu pensamento sem olhos, nunca o seu sentir sem palavras. “Fui melhor quando não fui eu”. Constatou ainda com dúvidas que o único meio de obter uma noção, mesmo que mínima sobre o bem e o mal,  é conhecer as lágrimas com a compaixão de quem é capaz de sentir pelo outro o sofrimento e a alegria.

Sua pretensa ingenuidade entrou instantaneamente noutro par de olhos fixos na escuridão.  Gostaria de dizer que não mudara em quase nada e que estava até mais bonita, mais feliz. “Os recados, às vezes, passam sem ruído, nem sempre cegos”, murmurou imaginando que viria do infinito algum elfo para esvaecer a sua hesitante decisão.

Não conteve o impulso de retornar e preencher com delicadeza o que carregaria para sempre no seu importante jardim sem importância.

Ainda que não soubesse, a engenharia das minudências soava como um límpido cristal, permitindo um quase perfeito retrato, à distância, do lugar onde estava. As mudanças invisíveis, enganadas, aparentemente imóveis.  Conduzia palavras como se fossem água e sol, universos autônomos refrescados livremente nas transparências.

Tentava dissuadir o berço de estrelas longínquas – ninguém é capaz de tecer melhor sobre o acaso do que a fugaz eternidade que lhe conferiam, a cada vez que, ingenuamente, as imaginava caladas.

“Com que amor me vive essa porção que me escapa. Sempre soube que a escreveria e seria com a alma que não domino.” Murmurou no passo que dava em direção de si mesma, como se aninhasse um segredo revelador. Na dupla face que a tudo contorna, mesmo veladamente, havia um zelo imprescindível. Os deuses possuem a mesma e inauferível dimensão que passa invariavelmente pelo desejo, à presença de perpetuarem-se no âmago das consciências e revolverem-se na imperfeição do que nunca morre. “Permaneço no outro como sendo o meu árido exterior re-fletido numa solução inevitável. Com a beleza párvoa de não estar em mim.” 


aldeia de PescadoresII, óleo sobre tela, 2010


Suminha

Dos degraus junto à calçada prorrompiam papéis e folhas varridos pelas lufadas de ar, prenunciado a torrente que se aproximava. Sob a leveza das malhas de algodão aguardava os pingos da chuva que lentamente lhe umedeciam a pele, o fôlego palpitante, apoiado por uma hachura decidida.
Caminhou ondulando as pernas, apreciando o tremular das gotas como um afago de nanquim que lhe retirava as ardências do dia.

Largou os sapatos encharcados junto ao chão luzidio da casa – a janela debatendo-se contra o vento numa cantoria estridente. As paredes lhe ampararam o cansaço. Via-se no debrum da água que a banhara como se só naquele instante realmente valesse a pena desvelar-se.

Os livros que carregava no colo amaciaram a mesa e as transparências da sala. Largou-os como quem liberta retratos de outrora, recolocando-os novamente no olhar. Quase perscrutava com exatidão pueril o chilreio das folhas semi-abertas, devorando as capas, os desenhos das capas, tateando: até onde tudo era somente o mosto de histórias, sons desertos, cores aninhadas em outras cores, águas dentro de outras águas?

Buscava rapidamente o ar mais puro e perfeito, como quem se dispõem a arrefecer o frio, a alma disposta sem repressões nos vãos da natureza. O barulho da enxurrada preenchia as fendas rudes da casa, o telhado ensurdecia-se dos pingos desfeitos na cerâmica. Viu-se no desassossego das ações mais simplórias. A louça do dia anterior ainda rescendia à canela e erva-doce. Quantas vezes tomara o chá desanuviada de afazeres para melhor prender-lhe o sabor? Não tinha dúvidas de que se filiaria algum dia, com tempo, ao movimento slow. Pensava enquanto o vapor do chá se misturava à poeira da chuva.

Lá fora para onde resolvera retornar, as flores permaneciam no seu crescimento inevitável. A legitimidade de estar conspirando para além da linguagem lhe parecia a incompreensão de assumir detalhes, a desistência decidindo por uma oposta intimidade apaixonando-se por silhuetas abstratas como se soubesse que, ao flanar sobre as coisas importantes, passassem, essas mesmas coisas a não ter mais lugar algum no mesmo e luminoso mundo que as pensara.  No incomum, talvez mais oportuno e incômodo, longe de superlativos ou relativismos, a lucidez de argüir sobre o que é grandioso ou necessário nasceria invariavelmente da suspeita de não chegar a nada sem a via crucial dos sentimentos.

As pétalas palmilhavam-se de um amarelo descrente, olhava-as, em tintas musicais – colheu várias, sentiu-lhes a seda, como se pedisse desculpas por não considerar-se uma delas.

Pinças de brisa se estendiam na claridade morna, retorcendo-lhe a curiosidade.  Com alívio, retornou para dentro da casa. Amaciando-se na umidade da aragem, desfazendo-se sobre lençóis e travesseiros rebordados de um cetim confuso porque de letrasbrancas que sobre o negro cansava-lhe o fundo mar dos olhos.

Pensava como se sonhasse... e escolhia retornar à beira do areal, ao menos até o verão retornar, a pele sugada por um farfalhar de asas, em movimento de abraços...bastava-se num colar de ametista, afoita, sulcada pelo que se fora,  quiçá em ramas de mangues, de uma garça que vigiava –  o vento ruminante torcia as gaivotas, tomava notas ao secar-lhe os olhos suspeitando que a sensibilidade das retinas desse em algo possível de prodigalizar.  Adiava as ondas enquanto ganhava novos óculos escuros, as têmporas renovadas pelos filtros duros de lume, da brandura árida que não mais lhe provocava lágrimas. Como se assim pudesse evitá-las.

No lado mais despido da praia o bailado das dunas era um dueto a agigantar-lhe os cílios no rumor sonoro e miúdo do algaço. A vida era real como o vento que soprava a memória dos sais retidos de Suminha. De outro ponto os cardumes contrariavam a correnteza e as redes como se fossem seus olhos multiplicados em cepas e borbulhas, em busca de fertilização.

As mãos restavam finas produzindo fogueiras sobre o mar – repletas de matizes azuis e verdes, a rebuscar a serenidade líquida transportando-a, imensurável, para uma tela qualquer, sem importar-se se alguém diria que era um auto-retrato, um resto obscuro retirado da coloração irresistível dos corais.

Os dedos ágeis como o choro contido nas achas por arder, perfuravam o silêncio, prosseguiam nos mimos hirtos do horizonte, bebia do sargaço, do sumo esgarçado nas bordas dos barcos que mascavam a madeira carcomida pelas cordas da âncora. “Sobe um pouco mais Suminha, preenche o ato duplo dos gestos com o teu verde pueril – há ornamentos suficientes para estilhaçares condições que por um descuido fútil do destino não mais te pertencem. O tato Suminha”.

Retomou os despojos. Alguma coisa sobrara dos rabiscos que ousaram ferir a brancura daquele dia, das polifonias daquele vento, daquele sal, se a preenchessem de mais cor, de mais força – o que havia perdido permanecia em origamis devorados por fungos de esperança – quantos pronunciavam que a experiência não se media entre os dedos, entre o passado e o futuro, tampouco em entretantos.

Suminha do desacato chamuscava os feitiços luminosos, não suportava a idéia de submeter-se por mais tempo ao torpor. “Que cores acordam-te mais a música por dentro Suminha? Assim, na umidade? Que rio te quer decantar esse azul-vermelho-débil-verde”. Dá voos aos beijos azuis, lava a lama das asas, o corpo fenece, lúbrico, como se moldado pelas águas que lhe caíram do céu, na face, na secura febril dos olhos, o azul fiel lhe dá guarida.

A xícara de chá é óleo, medium, piano, tecido. Agora sentia o sabor, controlava as gotas, recriando-se, diluída do silêncio, na leveza de esvaziar-se no que lhe agradava. O peso leve da louça era igual ao da vida, da sua vontade que enfeitara feito Penélope cega, partituras dispostas num circuito infalível... a limpidez dos nadas que carregava como adornos. Dos engenhos orquestrados, das teclas, das paletas. Demais o que desconhecia, era desnecessário dispor ...os azuis salpicavam-lhe os cabelos, como pincéis de outono musicando-lhe o que, independente de solicitações, concebera para o mundo – Suminha é a multiplicação assídua dos sons suspensos na memória, na umidade lídima de cada segundo que ensaia abrir-se no horizonte. 


Galeria: Tere Tavares 






Tere Tavares, escritora e artista plástica, radicada em Cascavel, PR, Brasil, autora de sete livros publicados Flor Essência (2004), Meus Outros (2007), Entre as Águas (2011), A linguagem dos Pássaros (Editora Patuá 2014), Vozes & Recortes (Editora Penalux 2015), A licitude dos olhos (Editora Penalux 2016), Na ternura das horas (Editora Assoeste 2017). Conta com diversas publicações em antologias no Brasil e Exterior. Possui publicações em várias revistas, jornais e sites literários espalhados pelo Mundo. Integra a Academia Cascavelense de Letras.
 


 


Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548