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Ilustração: deviantART |
O carro tava falhando. Tinha horas que o bicho engasgava no sinal e eu tinha que empurrar. Liliane tinha um Comodoro prata herdado do pai. A gente não estava bem. Nosso lance estava ruindo. Ciúmes, falta de dinheiro e meu alcoolismo estavam matando nosso relacionamento. Então um dia ela buzinou no meu portão e fomos dar uma volta. Ela enfiou um Bethoveen no toca-fitas e fomos atrás de uma sorveteria. Liliane curtia pistache e abacaxi no cascalhão. Acho que ela tentava ser feliz comigo. Ainda acreditava que eu pudesse parar de beber e ter uma renda decente.
- O silêncio tá corroendo tudo.
- Até o sol, Diego.
- Acho que a gente não pode mais se ver. Tá virando uma coisa ruim. Sufocante. Opressora. Acho que já te magoei muito. Você precisa ficar longe de mim. Já pensou em tantos caras legais que estão de bobeira por aí? Não tenho nada a oferecer. Só a minha presença indígena e um lirismo dolorido de derrubar boxeadores.
- Não quero ficar com ninguém.
- As coisas não vão mudar. Escolhi essa merda para viver e não sei quando pode dar certo.
O Comodoro parecia um navio prestes a naufragar no asfalto. Sentia-me numa coisa pesada e frágil. Batia a vontade de abrir a porta e sair andando sem olhar para trás. Estava me fazendo muito mal alimentar falsas esperanças para ela. Dizer que tudo ia ficar bem com o novo livro. Que a gente ia deixar Manaus e morar numa casa bacana em Floripa. Não acreditava mais em literatura. Estava querendo desistir de tudo e trabalhar de carteira assinada no distrito industrial. Eu era uma montanha de gordura e humilhação. Um fardo romântico com uma mulher incrível que sofria com a minha miséria. Um Tim Maia que se culpava por beber e cheirar.
- Você vai ficar bem. Vai entregar seu livro novo.
- Não vou, Liliane. Não estou feliz. Tens que me deixar.
Então ela começou a chorar. Também chorei. Começou a tocar a nona sinfonia de Ludwig van Beethoven e o carro perdeu o freio na ladeira. Fomos descendo de ré até bater num caminhão. Tiraram-nos chorando do Comodoro e nos abraçamos no chão. No asfalto. No mormaço. Liliane me beijou e eu disse mais uma vez que tudo iria ficar bem. Que a amava profundamente e meu novo livro seria dedicado para ela. Chamamos o guincho e entramos de mãos dadas num motel. Fizemos amor como nunca tínhamos feito antes. Ela disse que queria um bebê. Gozei dentro quatro vezes e dormimos.
- Se for menina, o nome é seu. Se for homem, o nome é meu.
- Hilda.
- De Hilda Hilst?
- É.
- Tolstói
- Do escritor russo? Não tem uma marca de brinquedos com esse nome?
- Tectoy. É uma marca de vídeo games.
- Mesmo assim...Não vou permitir que pratiquem bullying com meu filho. Escolhe outro nome.
Discutimos, rimos e eu resolvi que botaria o nome do menino de “John” de John Fante e ela ficou na dela. Ficamos nos vendo pelo espelho do teto e pela primeira vez na vida senti que estava seguro e que talvez ela fosse o grande amor da minha vida.
Diego Moraes é poeta e contista. Tem sete livros publicados no Brasil e em Portugal.