Em breve será
irrestritamente
admitido
nos estudos sobre a História da Terra
tanto nas vulgarizações científicas
como em programas de tevê a cabo como
em publicações científicas respeitadas
apesar da inverificabilidade
um Éon geológico mais antigo do que aquele que, até hoje,
é reconhecido como o mais antigo do nosso planeta, o Arqueano,
cuja estabilidade na atmosfera permitiu estabilidade na crosta
cuja estabilidade na crosta e na atmosfera permitiu estabilidade para o nascimento
de diversas formações no planeta – sem o que não teria havido,
bilhões de anos depois, indícios e estratos de sua existência:
não pode não ter existido um Éon mais antigo do que esse
um Éon de atmosfera tão instável que não permitiria deixar,
na crosta que dele no entanto se formou,
nenhum vestígio
e que por essa razão
permaneceria
para sempre
invisível
sendo possível apenas à inferência
às deduções e à imaginação alcançá-lo:
negar esse fato é negar o estágio atual da Terra.
Tudo isso ele disse aos berros
bêbado
num cassino clandestino
horas antes de se encher de antidepressivos
e ter a vida salva por cinco comprimidos
o Sr. Cloud ingeriu 15 se ingerisse 20 a dose teria sido letal
escreveu o médico no prontuário.
Deixa eu explicar melhor, disse o professor de física da UFRJ, logo após acabar o almoço. Deixa eu explicar melhor. Imagine uma mulher. Uma mulher habitante dos arredores de Nice no século XIV. Uma moradora de um casebre modesto que ela divide com o marido, a mãe, o pai, a sogra, dois irmãos, dois filhos e três sobrinhos. Imagina ela saindo de casa num domingo de manhãzinha e indo à plantação onde ela ara a terra junto com o marido, os dois irmãos e o pai, todo dia, exceto domingo. Indo a uma parte da plantação onde existe muita terra exposta pelo arado, essa terra às vezes úmida às vezes seca, em que tocávamos, com mais frequência, quando crianças; imagine essa mulher do século XIV num lugar assim. Imagine ela catando um pouco de terra com a mão. Imagine essa mulher arrancando uma espiga de trigo do solo. Depois pegando no chão um pedaço de pano rasgado. Por fim, desenterrando um caco de vidro da terra. Imagine essa mulher fazendo o caminho de volta até sua casa, silenciosa. Imagine depois ela se isolando num canto da casa, enquanto seus filhos sobrinhos sogra e pais estão em casa fazendo cada um dezenas de atos e assumindo dezenas de posturas habituais. Imagine ela olhando atentamente para cada uma das coisas que ela trouxe consigo da plantação. Imagine isso por dezenas de minutos. Depois, imagine ela olhando para as marcas do seu joelho de camponesa. Comparando as marcas do seu joelho de camponesa com cada uma das coisas que trouxe consigo até a sua casa. A penugem do joelho com os fios soltos do pano rasgado, a pele grossa e enrugada do joelho com o punhado de terra mais seco, a parte avessa do joelho com as partes mais ocultas da trama do trigo. Imagine ela comparando tudo isso enquanto a sua mãe fala com seu pai a sua sogra ralha com seu sobrinho o seu sobrinho bate no seu filho a sua filha dorme, imagine ela registrando mentalmente cada um desses acontecimentos com frases quaisquer enquanto faz as comparações, joelho-coisas, e depois põe a mão nos seus seios. Imagine ela apertando os seus seios, levando a mão até o ombro, deslizando através dos pelos do antebraço, levando a mão até as costas da sua outra mão. Imagine ela retornando a mão pelo mesmo caminho, apertando de novo os seios, descendo a mão até as costelas, sentindo as costelas, apertando as costelas contra o parapeito da janela, observando as marcas fugidias de sangue pisado que o aperto das costelas contra o parapeito provocou. “Desconfie do sangue, aquilo de que você raramente escapa”, ela pensa em voz alta. Ninguém ouve.
é possível ver a imagem superaproximada
de uma câmera no olho de alguém
revelando as minúsculas criaturas
que vivem em nossos cílios.
A câmera em seguida aproxima-se de uma bactéria no cílio
e finalmente de um vírus dentro da bactéria. Mais à frente,
os visitantes podem ver a reprodução microbiana
por um microscópio tridimensional especialmente
desenvolvido e construídopara o Micropia. Os visitantes
podem se submeter a um scanner corporalcapaz de mostrar
que tipos de micróbios vivemem seus corpos. Eles podem observar
num ambiente escuro com um mostruário iluminado ao longo de toda a parede
dezenas de placas de petri coloridas
com diferentes bactérias. “Micropia devolve os visitantes
a uma era não pasteurizada, quando organismos invisíveis
eram objetos de fascinação
antes de serem alvos de eliminação”.
Seguindo pelo microzoo, os visitantes podem ter acesso
a uma extensa coleção de fezes animais
e um sistema digestivo humano preservado.
Eles podem ter acesso também a filmes
de diferentes animais em decomposição. (Num deles
pode-se ver uma girafa recém-falecida
acomodada num container, um pouco menor do que a girafa
o container aberto filmado de cima
a girafa deitada meio troncha, com suas pernas desengonçadas sobre o próprio corpo
o filme acelerando
a decomposição do corpo da girafa
que perde a cor, que perde as pintas, que perde a pele, que perde a carne,
que se torna carcaça,
as pernas restos de pernas desengonçadas,
o corpo resto de corpo desengonçado,
o filme não de uma girafa se decompondo
mas de bactérias celebrando a vida.) Os visitantes podem veruma árvore da vida ampliada cobrindo toda uma parede
nossos mais laureados reinos, os animais e os vegetais
relegados a um pequeno círculo num canto, com o resto da árvore (e da parede)
eclodindo em representações de micróbios. Pode-se observar ainda
um modelo em escala gigante do vírus Ebola
que está devastando o oeste da África nesse momento.
Bruno Domingues Machado nasceu em 1983 e vive no Rio de Janeiro. Mestre e doutorando em Teoria Literária pela UFRJ. Publicou recentemente o minilivro de poemas Breve história da ciência (megamini/ 7Letras, 2017). Os três poemas acima fazem parte de seu livro inédito, passo os meses na biblioteca do ccbb lendo livros de história natural.