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Mira Nedyalkova |
do amor e o seu osso
ii
não há metafísica no amor
somente a mão
somente a pélvis
o esterno
e o pescoço em giro breve
todo sorriso (saiba) é feito de nervos
e ligamentos
as quadraturas da pele
em seus desdobramentos
não há metafísica no amor
somente o osso
(escápula, tíbia, fêmur)
o pelo
a carne
e todos seus unguentos
*
o filho mais novo
do rei de Serendip
deitou em minha cama.
tem um olho verde
e outro azul
e é hábil
com as adagas e as lanças
o filho do meio
do rei de Serendip
comeu em minha mesa
tem um olho mel
e outro cinza
e maneja
o arco com leveza.
o filho mais velho
do rei de Serendip
dançou em minha sala
tem um olho preto
e outro âmbar
e conhece
a pele das opalas.
os filhos do rei de Serendip
resplandecem
em minha tenda
ungem-me com óleo precioso
brincam com o acaso
e com as sendas
os filhos do rei de Serendip
brilham
nos meus olhos
como estrelas.
a memória
da tua mão contra a minha
o sol sobre as ruínas
a torre a língua
o cartaz colado no muro
quem amaria
pergunto
quem amaria
a marca da morte
sobre o meu corpo
esse meu rosto
o vago olho da lua
por sobre as águas
o ritmo
o ir e vir
dessa máquina
o homem que passa
e não nos vê
a mínima eletricidade
papel de bala
caído no chão
meu sim meu sim meu não
e sempre a memória
aquela da pele
da tua em minha mão
saber o caminho
do esquecimento
dessa cidade de luz
desse amor
desse invento
o que não podes me dar
o que não devo querer
um santo de gesso
quebrado
largado numa esquina
buzinas
um anjo ou um animal fantástico
atravessando o céu
teu abraço o peito contra o meu
cada dia um novo começo
letra lume o desfecho
a marca da morte
me lambendo o corpo
e eu o seu osso
o vento
e a noite em que fui embora
nessa eterna eterna demora
não faz diferença
o pão o andaime a véspera
a carta fechada nunca enviada
a linha da pipa embaraçada
saber do caminho
meu mar meu labirinto
dessa vereda de luz
chicletes dentes
onde leva essa escada
Jacó sorrindo para o nada
a memória da carne tão escassa
a mão o braço o lábio
esse mundo aos pedaços
o sol alevantado
meu contentamento
teu voo
meu pássaro
Micheliny Verunschké autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy 2003), O Observador e o Nada (Edições Bagaço, 2003), A Cartografia da Noite (Lumme Editor, 2010) e b de bruxa (Mariposa Cartonera, 2014). Foi finalista, em 2004, ao prêmio Portugal Telecom com o livro Geografia Íntima do Deserto. Publica em 2014 seu primeiro romance Nossa Teresa - vida e morte de uma santa suicida (Editora Patuá, com patrocínio do Programa Petrobras Cultural), vencedor do Prêmio São Paulo de 2015, Aqui, no coração do inferno (Editora Patuá, 2016) e O peso do coração de um homem (Editora patuá, 2017). Prepara, dentre outros projetos literários, sua poesia reunida. É doutora em Comunicação e Semiótica e mestre em Literatura e Crítica Literária, ambos pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Prepara, dentre outros projetos literários, sua poesia reunida.