Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

"Onze e meia" poema de Lisa Alves

$
0
0


Cena de "Morangos Silvestres'" de Ingmar Bergman



In Memoriam de M.J.P

E diziam que era tão forte
e que venceria a embriaguez do velho
e a ingratidão dos filhos
e que enterraria a única filha
e só depois de cento e vinte anos
deitaria na terra pra finalmente descansar.

Diziam
mas abril te levou
e não é mais um clichê de poeta.

Abril foi devastador
e cruel fomos nós
que não acreditávamos
que uma mãe poderia morrer
ou que tivesse o direito
de nunca mais olhar na cara
desse planeta de patrões e empregados.

Até escrevi isso no poema do Pai
que fechou os olhos depois de um 
mês exato do meu aniversário.


Não, eu não sou forte como tenho escutado por aí,
na verdade sou bem covarde
e só não meto uma bala na cabeça
ou pulo de algum prédio sem grades
por medo de ter que recomeçar tudo outra vez – como o aforismo 341 de Nietzsche.

Até do mar ando fugindo.
Até do canto das sereias.
Não sei o que vem depois. Quem sabe?

Lembra das minhas visões?
Dos gritos das cinco da manhã?
Eu sabia que iria perder todos vocês
quando caminhei à esquerda
quando conheci a margem
ou quando saímos do enterro da vovó em 1990
e você me disse para guardar minhas lágrimas
pois a melancolia não pertencia aos jovens
e muito menos às crianças como eu
e que minhas visões não passavam
de maldições hereditárias.

Eu te vi morta, Mãe!
Carreguei seu caixão
enquanto os homens 
de nossa família
me censuravam 
em nome dos velhos costumes:
“Mulher não leva caixão coisa nenhuma.”
Mas eu me agarrei em ti
e mataria mil se dali me tirassem.
E mataria. Eu juro!

Até hoje tenho aquelas visões.
Das cinco migrou para as três e trinta e três
mas é às onze e meia que espero o telefone tocar
e milagrosamente ouvir um
“Li, tudo bem? A mãe tá com saudade.” 
com aquele teu jeito mineira de ser.
Mas você não liga, Mãe!
E eu parei de atender qualquer ligação
para evitar que a linha ficasse ocupada.

Mas também não tenho muitas coisas pra te contar.
Além de dizer que você tinha razão a respeito de tudo
e que eu me enganei e vivo me enganando nessa história de amar
e que gente como a gente tem que ter prioridades
e que uma mãe pode morrer a qualquer momento
e que a gente vai junto – todo dia uma parte, uma célula e um pedaço do coração.

Amanhã vou desligar tudo e te deixar descansar em paz
mas só até as onze e meia – somente até as onze e meia.

___________________________________________
Lisa Alves | "Onze e meia" da série Canteiro de Pragas ::: Julho de 2017 :::




Lisa Alves (1981) é mineira, radicada na capital federal do Brasil. É curadora da revista de poesia e arte contemporânea “Mallarmargens”. Tem textos publicados em diversas revistas, jornais e páginas literárias no Brasil e em Portugal. Tem poemas publicados em oito antologias lançadas no Brasil, Argentina e País Basco. Lançou em 2015 seu primeiro livro de poesia intitulado “Arame Farpado”  ( Lug Editora, RJ).

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Trending Articles