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5 poemas de Carla Carbatti

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a palavra sanguínea é a que mais flui

houve um tempo em que se contava o tempo pelos movimentos, quase incorpóreos, multicoloridamente matéricos de crianças dançando nas curvas. por curva, entendia-se tudo aquilo que os signos não apreendiam dentro de suas fórmulas 

era o gesto que gestava o mundo, os segundos. o verbo era um pássaro de fogo pulsando na aurora. por aurora, entendia-se o encontro entre a luz e a sombra, esse estremecimento que alberga não uma lucidez ou uma certeza, mas um espanto
,
minha geração, por exemplo, nasceu da colisão do vento com as montanhas. minha mãe tem as mãos duras e afiadas como as pontas de uma estrela. procuro entre os detritos biogênicos aquele que, estranhamente linguístico, nos cicatrize a ferida. reformulemos assim: cuido para que o limite crie as condições para o tato
,
houve um tempo em que era por enquanto. grandes ambições cabiam no fôlego de um balão de goma. era por enquanto e homens matemáticos e mulheres cantoras gastavam hertz em noite sem regresso, em distâncias compartilhadas, em frases que escapavam do corpo feito um animal selvagem, feito bolinhas de sabão
,
“a única verdade é que vivo” diz Joana em desequilíbrio (...) fluxos de fragrâncias, de notas musicais, de cores hápticas, de vozes vegetais pairam no ar até se chocarem com as fibras corpóreas do meu pensamento. sentidos. então, eu digo um nome como quem descobre uma molécula. há sido experimental muito antes de ser exata. exala. sim, exala segundo a topografia da forma: informe: a palavra sanguínea é a que mais flui ... por fluir, entende-se a capacidade de fazer novas conexões, criar novos mundos



na gravidade dos caudais

braços e pernas dispostos numa canção
no espaço líquido desse movimento
pode nascer um livro, um lírio
um sentido de variações climáticas
tremores
na mecânica das águas
você fala porosidades
para caber a matéria
para respirar o interlúdio
eu me iludo abrindo as janelas
inventando arquiteturas para as tempestades
qualquer gênesis de aplicação prática
produz um ruído no tempo
o amor, por exemplo,
é esse tic-tac
essa bomba-relógio 
no coração do poema
umas dirão: - produzimos esquemas mais sofisticados:
cavalos de papel marché no motor da ferida
espumas hidráulicas no estômago de Moby Dick
clinâmen atômico em Jornadas de Junho
é justo
diante das sílabas sibilantes
os peixes vencem as funduras
escalam a atmosfera
as linhas perdem os anzóis
ganham as curvas
o universo se enche de grãos e vãos
vai, Lia,
habitar as tangências
girar na gravidade dos caudais



os gestos que estremecem os trigais

sou atravessada por todos os rios que naufragam no sul
por todos os gestos que estremecem os trigais
há uma espessura que só cabe o silêncio
porque nenhuma palavra tem a cicatriz exata
do mapa do meu ventre
porque meu sopro é distância e diáspora
[língua sem gramática e gravidade]
e as noites estão feitas para os dedos
e as cavidades



todo tocar é uma canção

enquanto acordo os pássaros
a mãe tece a mortalha do anoitecer
agora estamos fora
na linha curvilínea de uma folha que chora

que farei com minhas mãos
depois de tocarem aquilo que não se toca?

todo tocar é uma canção
- murmulha a mãe entre seus galhos e rascunhos
é isso que se perde, minha filha

e sua voz vibra as águas do meu punho




nas pontas do abismo

bonito. bonito o céu
o seu cabelo
contudo
tudo
está por um fio
frio nas solas dos pés
nas pontas do abismo
mismo ________ aqui
nesse lugar que você chama de distância
uma ânsia de te chamar
por algum nome que não se perca num grito
que se perca num elo infinito
num verbo que acenda o coração
que exercite os músculos 
numa política de afetos alegres
que me leve além da minha casa
dos meus passos, meu quarto, meus lençóis
que desestabilize a estrutura do possível
do estabelecido
do indivíduo
que seja isso
o risco 
de um nós


Galeria: Andrea Pramok



Carla Carbatti é doutoranda em Estudos da Literatura e da Cultura pela Universidade de Santiago de Compostela (USC). Possui textos poéticos, ensaísticos e resenhas publicados em várias revistas eletrônicas. É autora do livro de poesia  Na cadência do caos editado pela Urutau, 2016.

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