Ilustração: Hosana |
Enterradas na terra. Plantadas entre avencas e coqueirinhos e samambaias. O vício escondido pelas folhas dos vasos. Tudo tão bem disfarçado que eu me pergunto como é que o braço paralisado de papai consegue dar conta de cavucar e enterrar as garrafas. Muitas.
Mamãe acredita — com sua fé nos santos e nas rezas — que ele não bebe mais. E nem as frequentes idas ao jardim nem o cheiro permanente das pastilhas de hortelã a fazem pensar diferente. Ela não quer enxergar, não aguenta mais saber. Ou mente. Para que nós possamos respeitá-lo. Respeito? Raiva. De escutar a voz dela, trêmula, repetindo que a força do Espírito Santo o curou. De testemunhar a impotência dessa negação passiva, dessa responsabilidade repassada ao divino.
Como todos os que se recusam a ver, mamãe dá nomes diferentes à própria fraqueza. Abnegação. Companheirismo. Amor. Mas o que eu vejo é uma mulher perdida que se alimenta da crença em promessas convenientes. E um simulacro de homem que promete qualquer coisa para estimular a ingenuidade dessa crença. Cúmplices. A que finge; o que esconde.
Há anos, ouço desculpas. Coerentes, incoerentes, inúteis.
É assim que ele relaxa.
Ele está comemorando.
Com esse calor, quem é que aguenta?
Aniversário.
Natal.
Formatura dos filhos.
Férias.
Nascimento dos netos.
Aposentadoria.
O time dele ganhou o campeonato.
Ele está sem dinheiro.
E as quedas, os esquecimentos, a magreza excessiva, os olhos congestionados, o andar em zigue-zague, os vômitos, os banhos frios. Tudo escondido dos filhos. Ou nem tanto.Mamãe não se dá conta, mas faz tempo que somos parte da mentira. De tantas. De todas.
Ele exagera, mas aguenta. Se ele fosse viciado, já tinha morrido. Quem não toma seus porres na vida? Alcoólatra é uma palavra muito forte. Todo o mundo bate o carro uma vez ou outra. Caiu porque o chão estava molhado. Ele para de beber quando quiser. Ele bebe pra se divertir. Ele até que diminuiu. Deixa ele em paz.
Daqui a um ano, papai vai morrer. De cirrose. Nós ainda não sabemos, mas estaremos lá quando acontecer. Mudos. Coniventes. Preocupados. Temos nossas próprias garrafas no jardim.
Cinthia Kriemler é contista. De vez em quando, arrisca uns poemas. Carioca, mora em Brasília. Autora dos livros Na escuridão não existe cor-de-rosa (Editora Patuá, 2015), semifinalista do Prêmio Oceanos 2016; Sob os escombros (Editora Patuá, 2014); Do todo que me cerca (Editora Patuá, 2012); Para enfim me deitar na minha alma (FAC-DF, 2010). Participa de diversas antologias de contos, minicontos e poemas. Publica na Revista Samizdat todo dia 16. Tem textos publicados também em: Escritoras Suicidas, Gente de Palavra, Germina, Diversos Afins, Conto Afora, Revista Philos, Revista InComunidade.
Seu blog: http://cinthiakriemler.blogspot.com/
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