QUANDO
ONDA
/por Ylo Barroso Fraga/
As palavras não são nada mais do que nossa própria vida.
Hakuun Yasutani
A LEI REBELDE
antonio nasceu pessoa.
quando moço, foi arbusto.
agora, mineral.
é bom ver o velho antonio enrubescendo,
o segredo em suas maçãs antigas
que gravitam, grávidas
de tanino, sal.
ferrugem que mama
e regenera
no colostro das eras.
gosto de pensar que antonio
é uma pedra andarilha
(suas falanges provocam abalos sísmicos
enquanto acaricia uma rosa),
e que antonio,
e que antonio
(embora gasta a palavra pedra).
uma pedra andarilha
e porventura ilha de aventurança
pois bem ou mal chegou
e sendo ventura de viv’alma
procria a pedra à ventura
e ao vento ressona e ressona
e seu tributo paga.
CACIDA DO GALO
o limite do dia dança
no grito rubro do galo.
a testa franzida, a trança
do tucum, a palo
seco. toda trama
são franjas da manhã.
sanha – quem ama
sorve da romã
a seiva bruta
e o olhar enxuto.
salta o olho, e evita
o ouro que despista,
o mel que não molha.
arde o hálito.
para a alcova entoa
o galo seu cântico:
nem paga em côvado,
nem conta quântica.
é conta mais simples
mas mais adiante,
uma rede que embala,
um gosto rompante.
VOCÊ, ESPELHO, MINHA TRILHA
olho como ilha
invulgar,
seguindo, ímã,
suas pegadas de so-
no eterno, romã
em flor para o Deus-som,
viagem do dólmen ao dólmen
que ainda sendo homem.
seguindo-as, cegarás.
fitando-as, saberás
como libera seu trom
o incriado, e ecoam
sempiternos seus koan,
sumo e semente: ôm.
ANTHROPOS
domesticado pelo símbolo
a voz dizendo
atravessa! atravessa!
fustigado pelo meio-termo
saiu sem sombra uma besta: a cria
era a velha notícia enferrujada
e chumbada nos escombros da cidadela
enquanto a cadela armênia
traçava sua rota pulcra
e os vermes rondavam bêbados
a mortalha só veias e artérias
noite que um sol contém
sob o ubre machucado
o cio exortando a um outro céu.
domesticado pelo símbolo
suportou o peso da carne na carne
cegou ao diapasão da alvorada
Zagreu em arroubo de arrebol
chagas constritas eram desagravo
ao mar formado de seu suor
e suava e súplicas não rogava
à árvore plúmbea, ao vento pagão.
nu, imberbe, são, como deve,
o sem métron
de dentro de nós.
JUAN DE LA CRUZ
os deuses sopraram em meu ouvido:
foge, procura no abscôndito abrigo
da luz a cuja chama adere o oblívio.
mas tua falta embalará meu sono
e um verbo entre ser e fazer
emprenhará decerto o dia
do mistério já sendo uma pista.
um e nu
raio e diamante
sentinela dos próprios fantasmas
até o momento da despedida
que verbo inaudito
tanto tenho dito!
cunhei minha infância em minério impreciso
o resto sou ventos, voragens, abismos
numa mesma voz, salmos
a conformar este corpo liso
em tempos que foram
e aqui estou:
vago a esmo
sobre mim mesmo.
entre dor e deleite,
um outro desejo.
SOL NIGER
cio, siso, azo, sazão,
diapasão
cerzido o mundo
feito meu pão
cozido, rotundo,
nas trevas
e servido ao chão.
como cada não
ido a boca
ao cuspo e ao mosto
amalgama
como a hóstia acre
e sisuda ao sangue
ama e assoma
derramei os olhos
neste cautério
inaugural.
SURFE
não sei quem vai nessa onda,
não sei que vagas no peito,
que nume expande no dentro,
mas não falo do instrumento:
não sei o que me ronda.
sal nos mamilos,
salto no breu
de tanto brilho,
impuro, embora,
faíscas, cintilações.*
síntese, síncope:
supressão das oitavas
e o vento dissonante
soprado pelo sol ritual.
teme a turba mas o soldo
vem e a rugina singra os ossos do ofídio
e não há paga que iguale esta quantia
de calor, unguento e paz no precipitado.
*Ronald de Carvalho
ESPELHO DISTANTE
o pai espelhado embala-me nos braços
e forja-me em mim enquanto anda
em seu roteiro de minério.
ao espelho distante entreguei-me e já
não me cabe saber a medida de minha decisão,
a parte que tomo nesse mútuo ato.
emudeci, e voz evola não sendo minha,
mas ainda em mim maior que eu.
AURORA BOREAL
um velho alquimista em seu barco,
ele nunca pescou.
olhos postos no céu,
traz n’alma o espelho
-libélula, ela, esse elo
iriado e boreal. real
aqui, lá ela
é sal da intempérie magnética
em pleno mar abismal
e vai, nos vaus
celestes,
nas hermas d’estelas, Hermes
prestes
a alar-se
(lés- nordeste ou oés-sudoeste
estou, tudo movendo-
se) e senda sendo
deste êxtase,
redigia o sempre velho,
equilibrando-se, ponto,
no pequeno bote.
mariposa-psique pungente e penugenta,
sexoroboros,
larva do ovo cósmico
cá embaixo, refletindo
no lago, onde se anima,
como em cima
scribit tabula smaragdina.
e o filósofo persigna
-se enquanto pensa:
quando a ninfa abandona a exúvia,
eis a aurora boreal. um dia
também meu tegumento
ao lodo será fermento, a alma
libérrima, ela, esse elo,
ao céu, afinal.
e escreve mais uma vez
the scientist writes a letter*:
juntasse milhão de vagalumes
em um domo, afugentado o mal,
jamais alcançaria o gume
que transparece n’aurora boreal,
jamais atingiria o nume
da bruta flor em límpido fanal.
jamais a mariposa hirsuta,
o cândido e vago lume, a tal
tênue flâmula, jamais.
*Tom Verlaine
A PEDRA
movimento indestrutível
vazio substanciado
abismo entrópico
curva perpétua
onda imóvel
sphaera & caos
seu caminho é um espanto
sempre íntimo e repetido
de clepsidra ensimesmada
marcando horas passadas
FOGOS AO LAGO
cá como lá
no lago
lágrimas luminosas
fogo fugaz
SONHAR COM PEIXES
os quadris dos peixes,
seus ângulos insuspeitos,
sua mudez telepática:
o que me move enquanto pesco,
anzol sem isca,
o que interrogo e doura
sob a tez ondulada do riacho;
o que anima, imagino,
a viuvez do vento, ao transformar
dor e beleza em alimento.
SÓRDIDO
a lua é uma boca cariada
a lua é uma ovelha tosquiada
a lua é uma pústula inflamada
a lua é cálice derramado
a lua é sangue coagulado
e esse poema é meu pecado
pois a lua é um satélite natural
da minha melancolia.
WANDERLUST BLUES
feri um touro com minha melancolia e julguei árduos processos
com leves badalos d’um sinete que já não tenho às mãos,
e quem pude manter cativos são os que agora me confortam
enquanto sonho entre duas portas abertas.
baseei-me para tanto no tom cinza, brando e fundo a um só
tempo, o tempo todo apontando para dentro.
o que queria esse temporal silencioso anunciando-se
ao conduzir-me a esse aposento?
A FLECHA
até onde o farol se adivinha
a praia é como um arco tensionado
tantos antes de mim já fizeram o mesmo,
no entanto não estamos mais aqui
só a maré forte desenhando o passado
o fumo da maré esvaindo-se:
no entanto ainda está aqui
PAZ
céu raso e amor conosco
lá, a lua, tão muda
tão satélite
é uma pedra
BODE
o bode toca a pedra, a pairar
e é como se a pedra o tocasse
e a ira do bode arrefecesse
sobre o cimo da ira milenar:
o balido o que sela o mister
da pedra e do que circunda
como grito que quebra sobre os picos
do silêncio e funda
fogo e fé.
GESTO
entre o gesto solitário
e o gesto solidário
pendo
acima do silêncio
pairo
ELENA
Elena
a memória latente
vem de frente
ou de trás¿
Elena
onde hajam telas
o que pintarás¿
Elena
agora você emposta a voz
mas o agora já foi
e a resposta sói
dormir
entre os lençóis
entre os entres
entre os tantos
entretantos
(vírgulas que cospe a vida)
entretanto
Elena
eclodiu na bruma
um consolo
vá pega-lo
, Elena
quem sabe é sua voz
e se liquefará
O COMPORTAMENTO DO FOGO
um animal que adormece
em prestações febris
o elán mineral entre espírito
e matéria
o mistério apascentado
no elo perdido
o entre que adere
desde o princípio
os olhos amarelos da coruja
quando extintos
a ver na delicada chama
a própria adolescência do sol
LUAR
a velha língua do lago
engendra a palavra luar.
no abismo nada tomba:
novo idioma é forjado,
perfumes chegam do mar,
informes dados pelos navegadores
aos fantasmas enfunados nas velas.
a velha língua do lago
e seu semblante glabro
roca que fia
e desafia o traduzir.
PINTAR
Para Gil Fraga
o vento da melancolia enroscou-se em minhas narinas
e as águas paralisaram.
só o pintor se interessava e expunha o sol,
mas a claridade amainava
a verve plástica do horizonte
- esticando -
e por fim a fímbria
do traço trêmulo
alcançou a nota exata e fugaz
e viu-se na tela o movimento
do que na mente ia.
CLITOREA TERNATEA
um livro glabro,
que abro, dobro,
sondo e afundo.
desvelo o novelo,
rompo o mar vermelho
num gesto messiânico.
a palavra epifânica
revela ao mundo
seu gozo profundo.
O POÇO AZUL
tristeza que não acaba, mina
limpa, clara e profunda
quanto mais se afunda
no fundo de nossa alma
mais ela fica cristalina:
na capa, poeira fina
no oco, sem fundo, a calma.
pesa a leveza dos olhos
leve a certeza do não que sim, do sim que não
que ao firmamento conduz
e à desmesura leva
levo um novelo
envolto em leveza
e enlevo, e velo
o sacro ofício da vida.
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O poeta cearense Ylo Barroso Fraga, radicado em Brasília há 4 anos, acaba de lançar a segunda edição de seu Tris, livro de poemas que está em sua segunda edição.