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Imagem: jardimdomundo.com |
A poesia de Lilian Sais
Cremação
tenho dois cinzeiros
e um quarto de cinzas:
sobre o casaco, o chão,
a escrivaninha, a cadeira,
os remédios, o batente
da janela,
e um quarto de cinzas:
sobre o casaco, o chão,
a escrivaninha, a cadeira,
os remédios, o batente
da janela,
- tragada útil porque vírgula, pausa,
hiato, fenda, precipício,
xingamento calado,
suspiro disfarçado,
locomotiva descarrilhada da necessidade de ainda ser gente –
hiato, fenda, precipício,
xingamento calado,
suspiro disfarçado,
locomotiva descarrilhada da necessidade de ainda ser gente –
o que o vento leva
a chuva fixa,
cinzas simplesmente cinzas,
feitas de erupção portátil
e dispersas pelo hálito, sopro,
pelo vento,
feito eu.
a chuva fixa,
cinzas simplesmente cinzas,
feitas de erupção portátil
e dispersas pelo hálito, sopro,
pelo vento,
feito eu.
Trítono
(Para Teofilo Tostes Daniel)
porque grávida
de ausência
de ausência
urge o sorriso grávido
de alguma falta,
de alguma falta,
ruído grave, gestando
o impronunciável,
o impronunciável,
urgem lábios, margens
obscenas da inundação
obscenas da inundação
possível, sorriso
discreto, palavras impressas,
discreto, palavras impressas,
parto, farol de ruas
sem esquinas, ruas-rio,
sem esquinas, ruas-rio,
(quero morar numa cidade sem esquinas,
meus olhos ardem,
tenho uma pasta de artigos urgentes dentro de uma pasta de artigos urgentes dentro de uma pasta de artigos urgentes,
o corinthians foi campeão,
o preço dos tomates & a crise política & a meteorologia)
meus olhos ardem,
tenho uma pasta de artigos urgentes dentro de uma pasta de artigos urgentes dentro de uma pasta de artigos urgentes,
o corinthians foi campeão,
o preço dos tomates & a crise política & a meteorologia)
há meses
(são apenas dois olhos
duas pernas e dez dedos para tantas
urgências no mundo que,)
duas pernas e dez dedos para tantas
urgências no mundo que,)
transbordo.
- porque grávida
de alguma ausência
de alguma ausência
que o CID
não gera
não gera
entre as margens
absurdas da normalidade
absurdas da normalidade
o abismo
fere e confunde,
meu bem
meu bem
Prazos
digo sexta porque
soa longe, digo sexta
como quem diz
soa longe, digo sexta
como quem diz
outra vida,
porque essa semana
já é bastante,
porque essa semana
já é bastante,
como a anterior,
a outra, a próxima,
a existência percorrida,
a outra, a próxima,
a existência percorrida,
esse correr inexorável
de existir, ser gente
e não criado-mudo,
de existir, ser gente
e não criado-mudo,
cômoda de três gavetas,
capa de chuva,
porta-níquel,
capa de chuva,
porta-níquel,
- desenho na parede -,
digo sexta porque
não é hoje, e isso,
se não me basta,
não é hoje, e isso,
se não me basta,
já me serve
um bom tanto:
apenas hoje,
um bom tanto:
apenas hoje,
não.
Lilian Amadei Saisé doutora em Letras e pesquisadora e tradutora da área de grego antigo. Paulistana de nascença e fumante assídua por opção, é também leitora voraz da literatura brasileira contemporânea e coeditora da Revista Libertinagem. Participa da organização de diferentes Saraus espalhados pela Pauliceia. Gosta de samba, cerveja e poesia e é defensora da boemia, de piadas ruins e das conversas descompromissadas de mesa de bar. Os amigos dizem que é uma peste, mas que cozinha bem. Ela nega.