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Três poemas de Lilian Sais

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Imagem: jardimdomundo.com


A poesia de Lilian Sais



Cremação

tenho dois cinzeiros
e um quarto de cinzas:
sobre o casaco, o chão,
a escrivaninha, a cadeira,
os remédios, o batente
da janela,

- tragada útil porque vírgula, pausa,
hiato, fenda, precipício,
xingamento calado,
suspiro disfarçado,
locomotiva descarrilhada da necessidade de ainda ser gente –

o que o vento leva
a chuva fixa,
cinzas simplesmente cinzas,
feitas de erupção portátil
e dispersas pelo hálito, sopro,
pelo vento,
feito eu.


Trítono

(Para Teofilo Tostes Daniel)
porque grávida
de ausência

urge o sorriso grávido
de alguma falta,

ruído grave, gestando
o impronunciável,

urgem lábios, margens
obscenas da inundação

possível, sorriso
discreto, palavras impressas,

parto, farol de ruas
sem esquinas, ruas-rio,

(quero morar numa cidade sem esquinas,
meus olhos ardem,
tenho uma pasta de artigos urgentes dentro de uma pasta de artigos urgentes dentro de uma pasta de artigos urgentes,
o corinthians foi campeão,
o preço dos tomates & a crise política & a meteorologia)

há meses

(são apenas dois olhos
duas pernas e dez dedos para tantas
urgências no mundo que,)

transbordo.

- porque grávida
de alguma ausência

que o CID
não gera

entre as margens
absurdas da normalidade

o abismo

fere e confunde,
meu bem


Prazos

digo sexta porque
soa longe, digo sexta
como quem diz

outra vida,
porque essa semana
já é bastante,

como a anterior,
a outra, a próxima,
a existência percorrida,

esse correr inexorável
de existir, ser gente
e não criado-mudo,

cômoda de três gavetas,
capa de chuva,
porta-níquel,

- desenho na parede -,

digo sexta porque
não é hoje, e isso,
se não me basta,

já me serve
um bom tanto:
apenas hoje,

não.


Lilian Amadei Saisé doutora em Letras e pesquisadora e tradutora da área de grego antigo. Paulistana de nascença e fumante assídua por opção, é também leitora voraz da literatura brasileira contemporânea e coeditora da Revista Libertinagem. Participa da organização de diferentes Saraus espalhados pela Pauliceia. Gosta de samba, cerveja e poesia e é defensora da boemia, de piadas ruins e das conversas descompromissadas de mesa de bar. Os amigos dizem que é uma peste, mas que cozinha bem. Ela nega.



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