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Sua mãe vai morrer - Willian Delarte

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Era um palhaço triste, bem triste, a maquiagem mal escondia as olheiras, a calvície natural por baixo da peruca de calvície era gritante, bem como o cigarro nos dentes e o álcool. Diziam que nem precisava beber, a cachaça se entranhou no sangue de uma tal forma que bastava suar pro cheiro da cana subir. Era um palhaço triste, de uma tristeza das mais tristes, dessas que roubam brilho no olhar, sobrancelha direita levemente caída, respiração lenta nas frases longas, ofegante nas monossilábicas. Triste, muito triste, tão triste que seu maior divertimento era ver o medo nascendo naquelas pobres criancinhas. Possa ser, uns afirmam,  que nem sempre fora assim, o conheci em fim de carreira, desiludido da arte e trampando aos fins de semana num desses buffets para pais pobres se fingirem de ricos aos filhinhos metidos a ricos. Classe média em ascensão de pobreza, de espírito, disse-me ele próprio certa vez no boteco. Maiores informações de sua vida, nunca tive. Sei que perdeu a mãe e um grande amor, o que foi decisivo para a queda da sobrancelha direita. No mais, não teve filhos, não teve pai, não tem parente, e  pouco se sabe do seu passado.Há quem diga que fazia parte daquele grande circo cubano, que de grande e de cubano não tinha nada. Quando moleque, recordo-me que volta e meia aparecia nos terrenos baldios da quebrada com a lona toda remendada e um leão raquítico na gaiola. Chegava num dia e no outro já estava de bilheteria aberta. Fui algumas vezes com meu pai, mas palhaço, palhaço mesmo, lembro-me que tinha não. Não se sabe quando começou esse hábito melancólico de fazer brotar sementinhas amarelas, certo é que, de hábito, acabou virando projeto de vida, passatempo dos mais tristes, se assim posso dizer. Fala-se que guardou pé-de-meia, que nem precisa desses bicos pra viver, que sua estadia nos buffets nunca passa de duas ou três noites. Certa vez presenciei a cena, aniversário do filho de um amigo da Preta, pessoal metido a besta, mas de coração bom. Lá pelas tantas, no auge das brincadeiras de adivinhação, falando no ouvido de cada uma das crianças, ele sutilmente lançava a frase intragável: sua mãe, pirralho, vai morrer... ninguém vive pra sempre não... como eu, como você, sua mãe vai morrer... Era uma canção de sua autoria- quando o goro  descia ele também a puxava alto no boteco -, e o refrão interminável, apunhalando aquelas almas pequeninas, acabava com a razão de qualquer encontro. O choque era tão brutal que as crianças travavam por completo. Como detentora de um segredo incomunicável, desses que nem a si se pode revelar, elas tombavam, uma a uma, numa expressão de profundo rancor. Emudeciam, e a festa, por falta de ânimo geral - que essas coisas se pegam no ar -, tinha que ir logo aos parabéns, abraços e despedidas. Jamais adiantou os pais,  psicólogos, pastores, todos esses tentarem arrancar palavras e o porquê daquelas sobrancelhinhas caídas. Conta-se que uma geração toda triste se criou pelos arredores e que, para fugir de atroz tristeza, divertiam-se como bobos e, como bobos, cresciam rindo por nada, feito palhaços. Quem diria? Quem diria que este seria o fim? Era um palhaço triste, muito triste, e ao abrir o jornal nessa manhã quase não pude crer se tratar do mesmo Palhaço Melancolia. Perdido no rodapé da página, vinha o caso de um pobre e drogado morador de rua, espancado até à morte numa dessas tristes e frias madrugadas por um grupo de playboys saídos da balada, sugeria a notícia... Minha sobrancelha saltou de susto ao ver o riso bobo colado com sangue na frase do chão que, em letras quase imperceptíveis, dizia  para quem pudesse entender: sua mãe te espera logo ali, filho-da-puta. Era um palhaço triste, tristeza dessas de passar da conta e, pelo riso imbecil, largamente idiota, morreu assim, no auge de toda a tristeza, feliz.


WILLIAN DELARTE

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