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8 poemas de Mauro Santa Cecília

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ESSA CASA NÃO É MINHA

Minha chave aqui não cabe
desconheço a fechadura
e a metragem desta sala.
O teto não me diz nada
o ar da cozinha é estranho.
Claro que não é o meu quarto
onde me deparo agora.
Nunca dormi nesta cama,
nem me sinto bem aqui
depois de todos esses anos.

Ser poeta não é opção
é sina ou é maldição.


ERRÂNCIA

Eu me lembro de sair perto
da mão forte de meu pai
(era como um escudo).
Ele ia beber no pé-sujo
e eu ficava solto pela rua
brincando com o disco voador.
Lembro também de perguntar-lhe
qual carro era mais complicado
para dirigir. (Eu queria ser presidente
e dirigir o carro mais difícil).
Lembro depois na festa do colégio, no dia
dos pais, que era o único a ficar com a mãe.
Foi quando abandonei a infância.
(Ninguém me pediu mas
preferi pôr o mundo nas costas).
Só lembro de acordar criança de novo
por volta dos vinte e poucos anos.
E assim virei vagabundo, sur-
fista medíocre e ex- advogado.
Subi o morro da Mangueira
certa noite e quase morri
por não respeitar os protocolos
da bandidagem.
Mas gostei do espanto de andar
na corda bamba.
(E aprendi de vez que não havia
quem segurasse a minha mão).
E aí para mim ficou claro
que nunca mais ia deixar de
ser criança nessa vida.

          
ELA

A mulher loura, em pé no ponto
de ônibus, tira da bolsa o esmalte
vermelho e faz as unhas da mão
enquanto o ônibus não chega.

Ela não vai descansar.
A palavra descanso não faz
parte do dicionário de sua vida.
Ela pode algum dia atingir
quase o limite de suas forças.
Mas ela dorme, recupera as
forças e segue em frente.
E esquece a palavra cansaço.
Porque há muitos jovens que
já nasceram cansados e andam
cansados o dia inteiro. E porque
depois há toda a eternidade
que é um tempo que nem passa
pela sua cabeça.


FLA X FLU

Drummond ou João Cabral
Caetano ou Chico
Anderson Silva ou Minotauro
Pepê ou Rico

Mário ou Oswald
Pepeu ou Armandinho
Selton ou Wagner
Cartola ou Nelson Cavaquinho

Piquet ou Senna
Clarice ou Cecília
Paula ou Hortênsia
Mônica ou Cebolinha

Titãs ou Paralamas
João Gilberto ou Tom Jobim
Chacrinha ou Sílvio Santos
Maysa ou Elis

FHC ou Lula
Antonio Cicero ou Waly
Renato Russo ou Cazuza
Mundo Livre ou Nação Zumbi.

Escolhas erguem muros espessos no caminho.


POR VOCÊ

por você, eu limparia os trilhos do metrô
eu iria a pé do Rio a Salvador
por você, eu roubaria uma velhinha
eu dançaria tango no teto da cozinha
por você, eu adoraria a disciplina japonesa
eu aprenderia a fazer cara de surpresa
por você, eu viajaria a prazo pro inferno
eu tomaria banho gelado no inverno
por você, eu hoje deixaria de beber
eu enfrentaria um lutador de caratê
por você, eu ficaria rico em um mês
eu dormiria de meia pra virar burguês
por você, eu só sentiria essa febre
eu conseguiria até ficar alegre
por você, eu viveria em greve de fome
eu mudaria a grafia do meu nome
por você, eu pintaria o céu de vermelho
eu teria mais herdeiros que um coelho
por você, eu aceitaria a vida como ela é
eu desejaria todo dia a mesma mulher


DOCE VIDA


são
dias
meses
anos
luta
medo
sonho
pedra
nada
mais
sobra
sopro
&
pronto


Célula mater

o país de cabeça
pra baixo regurgita
tinha muitos projetos
para esse ano
alguns já caíram
e não dá pra esconder
o verbete
                  triste
mas exercendo o desapego
me sinto livre
o plano agora
é seguir vivo



TRILHOS DE LUZ

O mundo dá muitas voltas

Quase tudo passa
mais ou menos incólume.
A única coisa que
permanece e espanta
todos os demônios que surgem
do nada, da noite, do nunca
é o amor do amor sem fronteiras
de uma mãe preocupada
enquanto o filho não chega.


Galeria: Igor Morski


MAURO SANTA CECÍLIAé poeta, compositor e artista. É formado em Direito e cursou mestrado em Literatura Brasileira (PUC-RJ). É autor dos livros de poemas A todo o transe (7Letras, 1997), Olho frenético (Aeroplano, 2005), A sombra do faquir (7Letras,2014) e Errância (7Letras, 2015) e dos romances Cão de cabelo (Língua Geral, 2008) e Argos (Móbile Editorial, 2013). Foi vencedor do Prêmio Literário Stanislaw Ponte Preta 94 (Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro). Como letrista, é parceiro de Frejat e do grupo Barão Vermelho, coautor das músicas “Por você” e “Amor pra recomeçar”. Também tem parcerias com nomes como Hyldon, Jards Macalé, Leoni, Picassos Falsos e Blues Etílicos. Escreveu a coluna "De bar em bar" no Jornal do Brasil. Em 2013, lançou o disco autoral Vou à vila.  Dá oficina e workshops sobre poesia e letra de música desde 2005. Em 2014 começou a estudar fotografia no estúdio Walter Firmo. Em 2016 fez cursos e um seminário sobre instalação na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, com os professores e artistas João Modé, Alexandre Sá, Franz Manata, Nelson Félix, Marcos Chaves e Rivane Neuenschwander, entre outros. Participou das exposições coletivas "Da urgência de cada um" (Despina /Largo das Artes - RJ, abril 2016) e “Palavra, Imagem, Matéria” (Olho da Rua – RJ, outubro 2016) e fez a exposição individual "Onde morava o mar" (Café Glicerina – RJ, julho 2016). Em 2017 (fevereiro), participou da residência artística da Casa do Sol, do Instituto Hilda Hilst,em Campinas (SP). Também neste ano, lança um disco de experimentações sonoras e poéticas, com Maurício Negão (Marcelo D2) e Julio Santa Cecília (Amarelo Manga) e o livro de poemas "Baião de 2", em parceria com Leoni. Em junho participa da exposição “Poesia Agora”, na Caixa Cultural/RJ. 

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