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5 poemas de Samanta Esteves

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vitrais

outro dia lancei um livro de poemas
isso dizem fazem os poetas não sei se
acredito acato visto a carapuça que me serve
só de brincadeira ou digo da melancolia
que me custa fazer poemas do azul fúcsia
das pupilas dilatadas guardando segredos
impossíveis da íris feita de espelhos coloridos
ou trincados meus olhos inventando narrativas
sagradas que eu não pude ver

***

Rocamadour, o mundo não aguarda
que nossa temperatura diminua o mundo
não nos reserva nenhuma ternura é preciso
fazer é preciso correr antes que seja tarde e
o mundo inteiro - o mundo e seus disfarces –
te engula numa tragada só antes que você dilua 
em meio à covardia antes que eles tragam no
canto das suas bocas frias a terrível constatação
de que você não iria tão longe você não poderia
nem teria coragem - a mesma, Rocamadour,
que eles não tiveram – não te espante quando
tudo estiver ao inverso isso acontece por tantas
vezes quanto haverão apostas em sua febre altiva
num pane mental que te impeça qualquer bravura
nas diversas formas de descompostura e suas noites
instáveis pálpebras que não fecham:
meu bem, eu te peço não espere não há nada
que te console ou gente pra velar teu corpo
não há marcha que desengate desse ponto
morto ou traga qualquer sorte


nesses dias é mais difícil 
não é a tristeza que segue 
ao choro
não é a aspereza da fala

não é a tarde que cai lenta 
dolorosa
é uma voz capturada

e o que queima não é a chaleira 
a lã do vapor
o frio cortando a boca

é ter costelas fraturadas 
um corpo atravessado 
por mil espelhos

(os estilhaços rebentando 
as vísceras)

olhar a janela e não entender 
nada porque às coisas falta 
espécie de bom senso

morrer e continuar vivendo 
conter partes que se bifurcam 
em metades impossíveis
buzinas anúncios 

cacofonias
notícias chegando 
de longe

e é difícil nesses dias 
não se sentir cansada 
não se sentir trancada 
do lado de dentro

a maré baixar 
a tempo
de não se afogar


poética

queria tanto levar jeito
pra poesia engajada ter
habilidade de cantar
a coragem 
queria falar de mazelas 
de batalhas que inauguram
bravuras 
e no entanto fui talhada
pra poesia clivada 
pra fissura 
não posso falar senão
da fratura do buraco 
dos desvãos
que habitam rasuras 
vácuos fendas
na esperança de que
quando vencerem
as revoluções
me chamem pra compor
doçuras lacunares


carolina

estou começando a perder
o interesse pela existência
começo a revoltar
*
eu cato papel, mas não gosto
então eu penso: faz de conta
que estou sonhando

areia nos meus olhos
e a certeza de que tudo
seria varrido se pudesse
as coisas ressoam
mas no fim surdo de tudo
as coisas são só
coisas
o pó o susto o nó
alarido mudo na garganta
o grau impossível da febre
tristeza maior a que a vida
me deu
a certeza de que pesa
pedra no sapato
vazio angular a perfurar
os ossos

uma varanda atravessando
os poros
um novelo a desenrolar
os passos

Ilustrações: Mihaela Noroc


Samanta Esteves tem 25 anos, é estudante de Letras na USP, e atualmente pesquisa a produção poética de Ana Cristina César. Arrisca versos desde criança, tendo publicado Estilhaço, em 2017, pela editora Patuá.

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