vitrais
outro dia lancei um livro de poemas
isso dizem fazem os poetas não sei se
acredito acato visto a carapuça que me serve
só de brincadeira ou digo da melancolia
que me custa fazer poemas do azul fúcsia
das pupilas dilatadas guardando segredos
impossíveis da íris feita de espelhos coloridos
ou trincados meus olhos inventando narrativas
sagradas que eu não pude ver
***
Rocamadour, o mundo não aguarda
que nossa temperatura diminua o mundo
não nos reserva nenhuma ternura é preciso
fazer é preciso correr antes que seja tarde e
o mundo inteiro - o mundo e seus disfarces –
te engula numa tragada só antes que você dilua
em meio à covardia antes que eles tragam no
canto das suas bocas frias a terrível constatação
de que você não iria tão longe você não poderia
nem teria coragem - a mesma, Rocamadour,
que eles não tiveram – não te espante quando
tudo estiver ao inverso isso acontece por tantas
vezes quanto haverão apostas em sua febre altiva
num pane mental que te impeça qualquer bravura
nas diversas formas de descompostura e suas noites
instáveis pálpebras que não fecham:
meu bem, eu te peço não espere não há nada
que te console ou gente pra velar teu corpo
não há marcha que desengate desse ponto
morto ou traga qualquer sorte
nesses dias é mais difícil
não é a tristeza que segue
ao choro
não é a aspereza da fala
não é a tarde que cai lenta
dolorosa
é uma voz capturada
é uma voz capturada
e o que queima não é a chaleira
a lã do vapor
o frio cortando a boca
é ter costelas fraturadas
um corpo atravessado
por mil espelhos
(os estilhaços rebentando
as vísceras)
olhar a janela e não entender
nada porque às coisas falta
espécie de bom senso
morrer e continuar vivendo
conter partes que se bifurcam
em metades impossíveis
buzinas anúncios
cacofonias
notícias chegando
de longe
e é difícil nesses dias
não se sentir cansada
não se sentir trancada
do lado de dentro
a maré baixar
a tempo
de não se afogar
poética
queria tanto levar jeito
pra poesia engajada ter
habilidade de cantar
a coragem
queria falar de mazelas
de batalhas que inauguram
bravuras
e no entanto fui talhada
pra poesia clivada
pra fissura
não posso falar senão
da fratura do buraco
dos desvãos
que habitam rasuras
vácuos fendas
na esperança de que
na esperança de que
quando vencerem
as revoluções
me chamem pra compor
doçuras lacunares
carolina
estou começando a perder
o interesse pela existência
começo a revoltar
*
eu cato papel, mas não gosto
então eu penso: faz de conta
que estou sonhando
o interesse pela existência
começo a revoltar
*
eu cato papel, mas não gosto
então eu penso: faz de conta
que estou sonhando
areia nos meus olhos
e a certeza de que tudo
seria varrido se pudesse
e a certeza de que tudo
seria varrido se pudesse
as coisas ressoam
mas no fim surdo de tudo
as coisas são só
coisas
mas no fim surdo de tudo
as coisas são só
coisas
o pó o susto o nó
alarido mudo na garganta
o grau impossível da febre
alarido mudo na garganta
o grau impossível da febre
tristeza maior a que a vida
me deu
a certeza de que pesa
me deu
a certeza de que pesa
pedra no sapato
vazio angular a perfurar
os ossos
vazio angular a perfurar
os ossos
uma varanda atravessando
os poros
um novelo a desenrolar
os passos
os poros
um novelo a desenrolar
os passos
Ilustrações: Mihaela Noroc
Samanta Esteves tem 25 anos, é estudante de Letras na USP, e atualmente pesquisa a produção poética de Ana Cristina César. Arrisca versos desde criança, tendo publicado Estilhaço, em 2017, pela editora Patuá.