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7 poemas de "Caligrafia das Nuvens" de Carla Andrade

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Migalhas ou milhagens ou miragens

Um pombo no meio de outros mil pombos.
Eles me viram. Eu os vejo.
Acordo e já tenho que rodar meu bambolê.
E as pessoas nascem de boca aberta
morrem de olhos abertos
despertam, andam,
encarnam em mim, nos outros,
zunem
zumbem
como o açúcar da canas
moídos no meu pensamento
como o melado que ainda fica
na cama depois que você vai.

E não sei onde pôr a mão
a mão sabia de cor
o desenho do rio
da montanha
percorria válvulas
engrenava cada movimento
das articulações.
Apontava qualquer arma que fizesse
a gente pular.

E não tem mais vida no sêmen
que a gente pega entre os dedos
e eles estão entre nossos dedos.
Eu não sei onde colocar a mão
mas alimento os pombos
e você diz que são ratos.


Espiral do tempo

Apenas um papel de seda nos separa:
o desenho da sua boca
minha espinha estúpida.
Na verdade são mais de 700 quilômetros
mas o caderno é meu.


Semente

O filho que a gente não teve
pede só mais cinco minutos
antes de pular mais uma vez
na piscina, a onda, o muro.
O filho que a gente não teve
aprendeu a dançar
com a última bailarina
e na ponta dos pés atravessa
a tapeçaria intacta do quarto,
da sala, da vida.
O filho que a gente não teve
dá petelecos no caramujo
enguiçado das quatro paredes
e limpa a mão da noite sem leite
no cardigã transparente,
meio azul, meio branco.
O filho que a gente não teve
é um sol arregalado
numa tarde mamulenga:
tem olhos escorrendo jabuticabas
e usa galochas para montar
as nuvens ainda não montadas.
O filho que a gente quase teve
brinca de esconde-esconde
na pia batismal há anos
e aprendeu a ajoelhar
e contar meus carneirinhos.
O filho que a gente quase teve
tem a cara de todos os filhos –
e a até a nossa.

  
Paraíso

A fruta amadurece.
Todo mundo come.
A mulher amadurece.
Ninguém me come.
Que vontade de ser
uma mulher
fruta da época.

Caligrafia das Nuvens (Editora Patuá) será lançado em 27 de junho

Ontem

Cuidado com o pecado
de favos de gente feliz
em dias sombrios.

As reuniões
com música e dança
é como a venda do trono de Pedro
nesses dias sem brio.

Para muitos, poucos,
o afear epilético dos beijos
que ainda damos
é um insulto tísico.

Em tempo de pedregulhos
de tantos estupros
sorrir com dentes
é indulto bíblico.

Poucos
se transformando em muitos,
equilibrados nas antenas das tevês,
cobram as escamas de qualquer defunto.

As taças na mesa
a anestesiar a carne
é corte profundo.
Escafandro.

A romã coroada
cravejada de gotas de chuva
emoldurada pelo verde mais verde
deveria sentir vergonha da
andarilha que sangra
em luto.

Vozes de Mussolini ao fundo
auto falantes
preparam as falanges.

Vencer a imigração
não é mais pular o muro.
E torço para os náufragos na África
redescobrirem um novo mundo.

  
Neologismos do meu corpo

Fixo sempre o olhar nas suas cicatrizes
como bordados feitos com pontos cheios
por alguém que sabe tudo sobre o que não é
apenas seu silêncio.
Dou uma arqueada no esterno
e logo meus peitos estão em suas mãos
a serem moldados como planícies
como seus primeiros castelos de areia
na praia onde havia mais pedra.
Mesmo disforme, sou um novo seio
confusa na minha falta de jeito de ser
deusa efêmera sem olimpo.
Com as mãos cheias de argila
você desaparece meus limbos
e apaga a realidade gravada
em meu quasar.
Sem ares qualquer forma não humana
você me transforma e sei que é assim
que fingimos reinventar nossas veias.
Fixo os olhos na suas cicatrizes
e continuo a saber tão pouco de você:
vago,
vago, você morde os lábios
e prende todas as conversas que não teremos
com medo de não encaixar as palavras nos
quadris da redenção.


Carinho de agulha

O penico nos dias de chuva
embaixo da cama.
O banheiro ficava fora do casarão.
As latas de óleo e margarina
armazenavam um cadiquinho
de tudo.
Longe as labirinteiras, longe.
Você tão perto,
num andar qualquer de concreto,
e toca a campainha
apenas às segundas-feiras.
Não chove em Brasília.
E a memória é um machado sem lâmina
de uma lenha que não se apaga. 




Autora do livro de poemas Caligrafia das nuvens (Patuá, 2017), Carla Andradeé mineirinha de Belzonte. Tem três livros publicados: Conjugação de Pingos de Chuva (LGE), Artesanato de Perguntas (7Letras) e Voltagem(7letras). Participou de diversas antologias poéticas como na Escriptonita: pop-esia, mitologia-remix & super-heróis de gibi (Patuá), Fincapé, Contemporâneas (Vida Secreta), além de ter poemas publicados em várias revistas de poesia contemporânea: Mallarmargens, Germina, a portuguesa InComunidade, entre outras.Está em Brasília desde 2000, e atua como jornalista e poeta. Inquieta e arteira, herdou um grande talento da tradicional família mineira: a arte de boiar e atravessar pinguelas.




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