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3 contos de Marcos Samuel Costa

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Glória a Deus, ele nasceu gay

            Aconteceu depois de uma longa viagem feita por ele. Passava quase sempre as férias fora, tinha uma tia que morava em outra cidade, e lhe tinha como um filho. Sempre o recebia com muito amor. Fora o carinho intenso entre ele e os primos. Foi na vinda. No primeiro dia após sua chegada. Entrei na casa dele, estávamos só nos dois. A sala. A casa. Apenas nos dois. Sentei quase que deitado no sofá. Disparou logo – “quero te contar uma coisa, Tadeu”. Fixos olhares. Ou uma leve distração. A sala tornou-se menor, cresceu sobre a gente. Rapidamente uma tempestade invadiu o rosto dele. Tudo mudou. Tudo. O escuro estava naquele olhar lançado sobre mim. A voz como um raio – “tenho uma coisa para te contar”. Novamente. E eu compenetrado. Falara em segredo. Em algo antes da própria existência. Nos conhecemos num culto de segunda-feira. Igreja lotada, muitos irmãos gritando “glória a Deus” em sua própria honra. Juntos fazíamos parte de uma missão – ganhar almas, vi várias vezes ele envolvido na extrema unção. Era o rapaz mais exemplar daquela congregação. Pregava. Pregava a si. Ou não. Disse-me – “eu sou gay, Tadeu”. Outra tempestade ainda mais forte invadiu aquela sala. Houve silêncio. As palavras sumiram de minha boca. Silêncio. Ele – “estou apaixonado por um garoto, o Tom, ele até fez uma música para mim, amo ele, nos encontramos. Tudo foi fantástico. És meu melhor amigo, tens que saber”. Não sabia o que dizer, nunca esperei isso. Das glórias que envolto na igreja. Plumas agora? Amor? Liberdade? Só sabia que ainda o amava como melhor amigo.



Como garotos que gostam de garotas

            Os dois sentaram juntos na beira da praia. Uma maré alta, ondas calmas, quase buscando o perfume do Criador. A areia começava a se somar com eles, os grãos penetravam a pele, desenhando símbolos. Levando para dentro do corpo de cada um novas estações, junções, articulação do impetuoso, como pétalas caindo a ermo. Conversavam sem parar – “como foi a primeira vez que você beijou um garoto?”, o outro respondia – “Não sei, foi bom”. Das eternidades aquela uma. Os dois juntos ao eterno. Houve uma troca rápida de beijos, mãos rapidamente correndo rumo ao efêmero, ao sexo inocente. A praia era de amor. Amavam-se a cada estalar de onda, crescer de água. Os pés empurravam a areia, fazendo novos desenhos, mudavam o universo sem ao menos perceber, vestiam-se de torpor, anarquizavam o cosmo. Ou não, eram apenas garotos jovens demais amando-se. Sorriam sem parar, caras de felicidade. Pensaram em tomar banho, mas não podiam chegar em casa molhados, havia algo chamado família que nunca entenderá aquilo de amor entre iguais. Não podiam molhar-se de águas da matéria. Física inexistente. Banhavam de si por si. Dentro da roupa um ânus cheio de cabelo, vontade e desejo, no outro, um pênis. Tanta maldade. Maldade. Quanto infâmia. Coisa absurda dois garotos se amarem. Vejo a poesia morrer no exato momento que suas bocas se unem. Os dias eram assim, de segredos e locais deserto. Sementes na mão. Olho de boto. Ainda um pouco de infância, distrações rápidas, por alguns instantes eram apenas criança. Na troca de mãos cheias de areia. Tudo acabou com a tarde, voltaram para suas casas – agora como garotos que gostam de garotas – e isso só irá mudar na próxima tarde de praia deserta, quando novamente suas bocas se beijarem.       



A fogueira de São João

            A cerca em cima da terra, terra em cima das raízes, raízes que envolvem mutuamente, e mutuamente envolvo-me com resquícios de amores passados – água corre rapidamente. Houve entre dois anônimos, a possibilidade de amor eterno, mas a palavra eterna por si só era grande demais, suas escolaridades eram rasas, houve dúvidas de escrita e entonação. A poesia que corrói a maldade não existia neles, no dia da extrema unção estavam na roça, cavando poços, desbulhando frutos vivos, ressoando diante dos irmãos as tonalidades oblíquas. Poderiam amar sim! Amar o instrumento que tornava real suas vidas, amor pelo facão, pela enxada... amor é tão estranho como comidas caras em mesas pobres. Não vou dá-lhes nomes, o nome carrega obrigações, se pudesse diria logo a verdade – um deles sou eu, mas não posso. E nós éramos dois, dois garotos de pernas finas, olhos fundos, pensamentos longe, e com um mesmo destino – sofrer. Direi de tantas noites passadas juntos ao breu da solidão, cada um em seu mundo, mas com ligações que uniam. Corro agora, neste instante, quebro todas aquelas ervas daninhas de pura raiva, saio de entre as raízes e corro atrás desse amor de verdade, mas não. Não posso, tenho mulher e filhos em casa, e ele mulher e filhos na sua casa, vive ele pois, enterrado assim como eu em si mesmo. Naquela tarde, em frente ao antigo igarapé dos desatinados, batizávamos, lhe dei um nome feminino e ele a mim, Lia e Iolanda, riamos sem parar, eternamente riamos, um do outro, riamos, éramos agora garotas cheias de sonhos, mas que não deixávamos de ser garotos que nós amávamos. Nos beijamos. Mas tudo durou pouco, no outro dia, garotos outra vez. Uma lição de carne doía em nossas peles, chegava o tempos das festas juninas, com quem iriamos pular fogueira? Jurar aquém amor? Partilhar a maçã? Ou nem comê-la? Fizemos nossa própria fogueira, chamamos os bichos e os infelizes a festejar conosco, pulamos juntos a fogueira de São João, mãos dadas, palavras juntas – eu sempre vou te amar, vou casar contigo.




Marcos Samuel Costaé natural de Ponta de Pedras - Ilha de Marajó - Amazônia brasileira. Atualmente cursa Serviço Social na UFPA e mora em Belém do Pará. Vive perdido no caos da cidade grande e entre livros de poesia. É membro correspondente da Academia de letras do sul e sudeste paraense e da ASPEELPP-DJ. Autor dos livros: Pés no chão e sonhos no ar... (Edição artesanal, 2012), Convites para amar(Editora LiteraCidade, 2013), Sentimentos de um século 21 (Multifoco Editora, 2014), Titulado amor (editora Literacidade, 2014), em coautoria com dois amigos: Interpoética (Big Times editora 2015), Uma semana de poesia (Editora Penalux 2016). Participou de mais de 20 antologias literá­rias, entre elas Ie IIAnuário de Poesia Paraense e publicou na revista, Mallarmargens e contemporArtes.  Mantem o blog, Someplace, onde divulga sua produção.

e-mail: marcos94sam@gmail.com  ou Samuel_pontadepedras@hotmail.com

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