Quantcast
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Nada de verdadeiro e outros poemas de Renato Suttana

Image may be NSFW.
Clik here to view.
Ilustração: Federico Beccari


NADA DE VERDADEIRO

Não há nada de novo
sob o sol de janeiro:
nada de exorbitante,
nada de verdadeiro.
Não há nada de sério
sob o sol de janeiro:
a não ser o mistério
que dura o ano inteiro
(a não ser o segredo
de haver sol e janeiro:
e não ser um brinquedo
o seu todo-mistério,
o seu jogo profundo
de ser o vasto mundo;
a não ser o mais sério
jogo de ir ao limite
ou de chegar primeiro
aonde o ânimo permite —
ou aonde quer que seja,
ou aonde quer que importe
ao passo, que fraqueja)
sob o sol de janeiro.
Nada há que se suporte,
nada que se confirme,
nada que se sustente
sob a cor verdadeira
e o brilho hialino e firme
que há no céu de janeiro. —
Nada que seja novo
ou opimo e excelente
ou mesmo exorbitante
ou só mais verdadeiro
ou sequer importante
(a não ser o mistério,
que é — este sim — árduo e sério,
como adaga pairando
sobre o estar indagando,
na véspera de sempre)
sob o sol de janeiro.



NO LONGE

Na fuga para o longe, para o fundo
da distância que dias e horas medem,
passam os céus, e o espaço perde o mundo;
e aldeias e paisagens se sucedem.

Um pensamento incerto, vagabundo,
a que as certezas nunca se concedem
sonda, busca um limite mais profundo
de ser, que os erros e as razões excedem.

Na fuga para o espanto, uma ansiedade
cresce no ar e na boca — que não sabe,
que nada ensina ao circo da verdade.

E o pensamento, externo ao próprio fora,
habita na escapada, onde não cabe;
e, num exílio de erro, entre erros mora.



FORÇADO

Forçado.
Todos os dias
o forçado
a vagar pelas dunas
a cruzar o deserto
com o fardo
das horas —
todos os dias.

A atravessar desertos,
transpondo fronteiras
de ignorado —
conduzindo até quando
o seu fardo de horas
e pensamentos
(que não contém
nenhuma resposta).

Forçado.
Sob o peso do sol
e da nuvem;
curvado sob o peso
dos pensamentos
sem uma pista
e da sede
que o leva sempre mais adiante,

até quando.
Forçado
entre as horas
e a distância,
entre os dias
e a meta —
a percorrer desertos
no estrangeiro,
com o peso dos dias

sobre o seu ombro,
com o dardo das horas
sobre o seu lombo.



TIVE A BELEZA

Tive a beleza nos meus joelhos certa vez
e, como um aprendiz, considerei-a amarga:
considerei-a como um dom da noite larga
que, sem causa ou razão, no dia se desfez.

Tive-a, esperando sobre um vão da lucidez,
como um vindouro bem que o acontecer embarga
ou um motivo de que a noite nos encarga
(e que é um fardo a assombrar a nossa intrepidez). —

Depois veio a manhã, com o seu amplo deserto
e a sua estrada de ansiedade e desacerto,
onde me fui perder, no circo da miragem.

Veio o dia com o seu dizer-se agudamente,
com o seu lábio de cinza e a imprecisa mensagem
cujo sentido era um destroço em minha mente.



PORTA

O meu tédio é uma porta
que não sei como feche:
se o momento me importa,
se a tarde me convida
(se o que há nela, durando,
me instiga e me concita) —
tudo isso é apenas trapo,
velha roupa que dispo
e atiro ao pé do muro
do (exaustivo) futuro.

É uma porta que não
sei se posso alcançar:
que lá está, sem razão,
em véspera de quando
(pela qual passa, em vão,
meu sonho de grandeza —
minha boba trapaça) —
em julho que não traz,
em agosto que vem —
por nada se alongando.



TRAGO COMIGO

Trago comigo, para andar nas ruas
desta imensa cidade, no estrangeiro,
uma ansiedade antiga de roteiro,
recrestada das horas e das luas.

É, na minha bagagem de andarilho,
como um lastro ou durável qualidade
que me acompanha desde a tenra idade
por toda estrada ou senda que palmilho.

Trago-a, como um estigma ou uma prenda
que eu devesse levar a algum obscuro
deus cujo nome em mim não se desvenda.

E dela sei apenas que me excede
do ontem cego à abrasão da minha sede —
alcançando as distâncias do futuro.


(Poemas inéditos em livro)


RENATO SUTTANA (n. 1966) é poeta, escritor, tradutor e professor universitário. É autor de diversos livros de poesia, publicados ao longo dos últimos treze anos. Tem traduzido para o português obras de poetas e prosadores de língua inglesa, espanhola e italiana.

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Trending Articles