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PEDRA E FLOR NA POESIA DE ANDRÉ MEREZ

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                                         Girassol fossilizado com 45 milhões de anos,  Foto: Barreda, Revista Science.


Suposto retrato

Como essa distância
que pula os muros e
alcança o outro lado
eu folheio as fotografias.
Vejo os olhos e cabelos,
as curvas de tecidos, as
covas de um sorriso e
tudo mais que, fixado,
resta em papel e tinta.
Não mais que uma falsa impressão
de uma falsa lembrança que foge
no desbotado do tempo corroído.
O papel fino entre os meus dedos
é tudo o que me resta daquilo que
um dia foram mãos espalmadas e
digitais bem conhecidas.
Não fica mais nada de íntimo,
nem uma caligrafia, uma data,
qualquer rabisco de uma esferográfica!
Fica só essa distância que me amarga,
fina entre os meus dedos
e cada vez mais apagada. 





Outro poeta

O poeta sempre é outro
não esse que se propõe.
Não essa fissura aberta
no intermeio do verso,
não esse suposto vago.

O poeta é outro, sempre outro.

À parte da teogonia de Hesíodo,
só essa camada de fibras e folhas,
só um ser assim sem as premissas,
o poeta não é esse suposto e visto.

O poeta é outro, sempre novo.

É sempre esboço, tem de ser,
sempre garatuja que se mostra,
busca que se deixa exposta,
desencontro, aniquilamento.

O poeta não é todo sentimento,
às vezes ele é régua e compasso,
às vezes é aço, ferro e cimento,
pátio vazio, concreto em branco.

O poeta é outro, sempre torto.

Viés de caminho, voz de dentro,
oblíquo, adunco, gauche, penso.
A dissidência, a vida mundo, vida
poesia nos pedaços desse tempo.






Declaração

Amo mulheres
que se amam

mulheres amadas,
fêmeas fecundas não fecundadas
e outras mais que levam no ventre

futuros de outras
mulheres amadas

que se derramam pela madrugada
e dão à luz suas virtudes roubadas

amo-as irrestrito
suave em delito
par
em
par
a todas e a cada.




A pedra e seu peso

Mais que flor
a pedra na dureza
penetrante e vazia
desse espaço.

Um não a cada gesto,
gestos e mais gestos
sinalizando o outubro
carregado de sonhos.

Sinalizando uma sombra azulada sobre um rio azulado que escoa lento.

Um não definitivo, todo.
Tão grande e insuportável,
uma pedra sobre a vida.

Pesada. Inteira. Absurda.

A mão dedos alongados
e finos segura abstrata a
pedra e o gesto e o não,
de tanto não acumulado
seu peso fixo se eterniza.

Ficaram o reflexo do rio azul de sombra azulada e o minério definitivo.

Tudo sobre a vida, pesado.
Tudo se misturando assim,
confundindo o sonho azul,
a pedra azul, a vida pesada.

 
A um pássaro morto

Céu vazio de pássaros,
o suposto voo perdido,
o dia alto em périplo e
o que deve se recolher.

Outros céus agora noturnos e os
silêncios de madrugadas e pousos.

O aspecto triste dos pássaros,
as horas vazias, os telhados,
sua plumagem de memórias
e a natureza fria do vento sul.

Voo perdido
vaga no céu.
Voo perdido
lugar de mim.

Lugar de vazios e supostos voos.











__________________________
Nascido na capital paulista em 1973, André Merez iniciou como letrista e contrabaixista das bandas Cathedral e Siso Símio nas décadas de 80 e 90. Cursou Letras e fez pós-graduação em Língua Portuguesa na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Na graduação realizou pesquisa sobre o discurso do poder na obra de Plínio Marcos e na pós graduação defendeu tese sobre as relações entre o processo inferencial e as questões de interpretação de texto na verificação de aproveitamento de leitura. Leciona Teoria da Literatura e Gramática há mais de 15 anos e desenvolve pesquisas sobre música, artes plásticas e poesia.  Autor dos livros Vez do Inverso (Lançamento marcado para o dia 13 de maio de 2017 pela editora Patuá) e Perfeição Acidental (inédito).

E-mail: andremerez@hotmail.com
Site: http://andremerezpoeta.blogspot.com.br


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