SEM AÇÚCAR ?
por Fátima Brito
BEIJOS PODEM NOS ROUBAR PALAVRAS. OU PÔR PALAVRAS EM NOSSAS BOCAS. E palavras engolidas a seco, quando ainda não temos a sabedoria necessária para neutralizar a agressividade que carregam, podem levar à morte – lenta ou súbita. Percebi isso e, também, que conheço algumas pessoas entaladas com um muro no coração. Não porque sejam ruins ou insensíveis. Pelo contrário, não conseguem lidar com o excesso de lágrimas acionadas pelas rejeições que nos acometem no dia a dia. Essas pessoas podem ser tão doces como a menina que, tendo vergonha de ver despontando sua sexualidade (“incomodava-se em ficar mostrando bunda e peitos”), resolve esconder-se por baixo de uma capa de plástico fininha e vai, então, devagarinho, revestindo-se de nova pele, “áspera e coberta de pelos grossos. E músculos rijos. E barba no rosto.” A menina vira, então, um abscesso na virilha, muito tempo depois extraído pelo homem já maduro em que ela se transformou. E ele a mantém – talvez já seguro da nova identidade – em cima do criado-mudo. Em diálogo direto com essa menina, conheci ROBERTA.
Esses e outros personagens tornam encantadorSem Açúcar, livro de FLÁVIA HELENA, composto por 27 contos, publicado recentemente (Penalux, 2016) e ganhador do PROAC 2013. Com linguagem fluente e narrador em terceira pessoa, a autora trata de temas essenciais à vida humana, como solidão, impotência, sexualidade, amor, traição, relações familiares. E o faz com uma suavidade que nos leva sem dramas ou excessos pra dentro da vida como – ao que tudo indica - ela é, ou seja, uma experiência relativamente longa que vem mostrando ser muito dolorido (ou, com certa frequência, impossível) esconder os grandes traumas que ela nos impõe.
Quanto a esse aspecto, Flávia encontra uma maneira muito peculiar de mostrar personagens – em diversos contos – atuando como engenheiros do próprio corpo. Ou como piratas, escondendo tesouros não percebidos como tais?
Vivem como pessoas comuns, sem qualquer protuberância ou aparente normalidade, porém, quase sempre, com certo grau de inconsciência, desenvolvem o poder de criar, em seus próprios corpos, compartimentos; pequenos (um furúnculo) ou grandes (uma barriga concentrando toda a liquidez de alguém que se mostra seca. Também criam engrenagens, mecanismos capazes de garantir uma eficiência duradoura que resiste à idade e à degradação natural do tempo... Ou simplesmente têm o poder de pintar, com uma poesia silenciosa, a realidade, inclusive a própria identidade, de acordo com seus desejos, assegurando paz e beleza àquilo que seria apenas inferno e feiúra.
Trata-se de uma leitura que suscita prazer, curiosidade e grande empatia, pois é impossível não enxergar - em cada um das dezenas de personagens de Flávia – a nós mesmos em nossos mecanismos de fuga diários, ou, no mínimo, enxergamos pessoas com as quais convivemos. Certamente por isso ela registre nas páginas iniciais do livro: “As estórias desse livro, inventadas, são todas de verdade. Porque essa vida, que a gente insiste em chamar de real, essa, sim, é ficção.”
Por tudo isso é que, se tivesse que optar novamente por uma leitura para inaugurar 2017, optaria por SEM AÇÚCAR, livro com o qual Flávia Helena estreia na ficção. E estreia tão bem-sucedida nos deixa ainda mais animados, porque certamente virão muitos outros com personagens quase de carne e osso, enriquecidos com a poesia a muitos de nós invisível no dia a dia. Personagens que não jogam nada em nossas caras, mas mostram com suavidade o quanto sofrer faz parte da vida, pois, como afirmado por Mia Couto, e também registrado nas páginas iniciais do livro, “(...) a felicidade só cabe no vazio de uma mão fechada.”
Essa perspectiva pessimista pode de fato corresponder à realidade. Mas SEM AÇÚCARnos mostra o quanto é possível ampliar as possibilidades de felicidade, nem que para isso tenhamos que nos reinventar a cada dia, murando ou desmurando corações. Por fim, só me resta dizer "Sem açúcar" sim!, e registrar o orgulho de estar em Atibaia, cidade de Flávia Helena, Vivian de Moraes, Juliana Gobbe, Irma Vazques, Marco Aqueiva, Tim Marvim, João Martino e outros escritores tão queridos e importantes.