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3 poemas de Natasha Felix

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EXTRAVIADA

se foi o jeito de dizer eu não sou
daqui, eu nunca nem conheci minha cidade
natal no quente da embriaguez com os ombros
de gavião pronto pro ataque.

se foi como comprimiu os beiços no baseado
com raiva ou quando embaraçava ainda mais os
cresposdo cabelo na mão enroscada de gozo
e quase nenhuma ternura.

se foi a castidade reservada
na curva do piercing da buceta, se foi o
maxilar contraído quando falava
do rio de janeiro e do amor que deixou
na glória com cinco pilas pra condução
e a lembrança de uma foda mal conduzida
no banheiro de um bar na lapa.

se foi o ódio pelo cláudio assis
na mesmamedida do tesão pelos filmes
do cláudio assis.

se foi a descoberta de que
o reverso do que se espera não passa
de uma insinuação marrenta de homens
e mulheres cegos por escolha, roçar os
sexos pelo jeans das calças.

fazendo justiça à tradição
ocidental até o tutano da baleia:
como se não fosse
possível amar A e odiar A
ou se deixar na glória e
ir embora da glória
ao mesmo tempo.



CONTÁGIO

o corpo sujo é barrado no ___
mercadinho municipal na farmácia no
enterro do sobrinho na missa do galo na
reunião de moradores do bairro. no hospício o
corpo sujo é bem vindo. o meu corpo
sujo é hospício
enquanto no banho lugar de onde
saio cada vez mais imunda
porca sem rabo preso azul no entanto
a língua suja de mulher suja não se aguenta
tem nome de urubu quando fala urubu
tem nome de tesão quando fala tesão
tem nome de socorro quando fala
é suja também imunda muito a língua
quando ousa o sistema linguístico
deixa água de lastro por ele inteiro
o sistema contaminado pelo chorume
o sistema linguístico agora extraviado
do cômodo bem instalado onde habita e o
corpo sujo ainda treme e vacila os joelhos
como um fungo uma doença como
árvore de joão bolão o corpo desavisado
permanece assim no entanto
incomodando, sujo imundo mesmo




DUAL

numa floresta qualquer na indonésia
a mulher conversa com o gravador ela,
sem língua, usa o objeto não como um espelho
mas de repente ele é outra mulher
que a responde com as mesmas perguntas. onde
está meu pai. cadê
minha família. onde ficou a minha casa.

parece, em outro de repente,
a voz dela dribla a saliva desconfiada
e seu idioma, lobo sem matilha,
isolado entre o corpo o gravador a acústica,
como somente o lobo fica entre seu corpo
o monte e o uivo, a voz da mulher
é aquele poema da wislawa
quando diz não saber de nada mais.

você deve se lembrar nessa altura precisa
saber ao fim do poema da wislawa perguntam
'esses são seus filhos' e a wislawa a segurar
o gravador como a mulher sem língua na
floresta da indonésia segura o seu próprio, a
wislawa não está na cena saiba.

apenas enquanto
objeto imóvel uma distorção de sons que
parecem respostas porque
afinal assim vive o poeta e seu uivo e seu corpo
longe de todo o resto inclusive dali
a mulher sem língua catalogada
por estudiosos
linguistas da universidade de são
paulo, antropólogos e cientistas políticos
de nada entende das viagens internacionais do
preço das bananas ou das lutas sociais dentro
do contexto patriarcal, a mulher
sem língua pergunta ao gravador onde está
meu pai. cadê minha família. onde
ficou a minha casa.

e ao fim da gravação os estudiosos da
universidade de são paulo guardam a aparelhagem
recuperam as mãos no bolso e limpam o suor da
testa com lencinhos umedecidos enquanto
quando a mulher pergunta 'suas mãos
são como as minhas' escavando a terra a resposta
é a mesma de antes com o gravador ligado.


 Imagens: David Drebin



Natasha Felixé de 1996. Nasceu em Santos e hoje vive em São Paulo. Teve poemas publicados em revistas digitais e lançou o zine “Anemonímia” em 2016. 

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