TERMÔMETRO
um pássaro pousou na fratura exposta pensando estar num galho. o pássaro não faz ideia do sangue pisado por onde pisa. tampouco faz julgamento moral. o pássaro é um ser lírico. feito para entoar uma ária, que repete pela vida afora, procurando seduzir. fosse um ser político, não assobiava. passava a vida arquitetando artimanhas para nunca deixar a política, nunca perder o poder, nunca perder o poder de decretar o certo e o errado (para si). sabemos que poder e dinheiro gostam de andar juntos. há muitas maneiras de facilitar ou dificultar as coisas quando se quer ganhar dinheiro. há bem poucos homens públicos que não se guiam por dinheiro. Mujicas são raros. os pássaros cantam o que já nasceram predestinados a cantar. papagaios não contam, pois, no máximo, repetem palavras ocas, divertidas. só os músicos poderiam cantar a política. mas estes andam muito deprimidos.
TERAPIA
sempre que fica triste, de mau humor, paralisada, eu a abraço, beijo, saio de dentro de casa com ela no colo e a levo ao quintal para fazer fotossíntese. deposito-a docemente sobre a laje do armário de vassouras e produtos de limpeza e a deixo descansar assim, sob o sol, por meia hora. o efeito se produz aos poucos. as lágrimas vão secando e os olhinhos úmidos voltam a mexer, a piscar. as pernas principiam a pedalar. as mãos batem palmas. essa, a mulher que amo. todos os dias me esforço, rezo, para que se repita esse milagre.
HORAS MORTAS
o céu, esse denso azul de metileno, ameaça desabar sobre minha cabeça. vazio, belo, opressivo. meio-dia? pela manhã, Magritte passou varrendo as nuvens e as sombras, e pôs os pássaros da vizinhança para dormir. meu quintal agora é um punhal polido. nenhum ruído de cidade grande. tudo limpo, silêncio. só o gosto amargo do café. faço um esforço extremo para manter a respiração. a romãzeira não se mexe um milímetro. não tenho coragem de entrar. e se os relógios estiverem parados?
O TEMPO FORA DO TEMPO
mesa na varanda, vista para o vale. das mãos inaptas da mãe, antes pianista, o vento sequestrou o guardanapo, levou-o cada vez mais alto para o leste, em ziguezague, até tornar-se uma estrela, ferida de mortal beleza pela luz do sol cadente. sentadas ao redor da mesa, a mãe, com Parkinson há muitos anos, e as filhas conversavam. por alguns minutos, deixaram-se levar pelo espanto da flutuante viagem. seguindo o rastro do guardanapo, uma semana depois – 17 de janeiro de 2008 –, a mãe partiu num desastre de automóvel. muito antes, eu sabia do poema visual de Beleza Americana – um saco plástico bailando nos braços do vento. o mundo em suspensão. agora, em 2016, assisto à cena – Dinamarca, alto de um promontório: um casal de amigos, Gerda e Hans, vê o lenço de seda ser-lhes raptado das mãos pelo vento, num fim de tarde de 1930, e seguir volteando o rastro de sua antiga dona, Lili Elbe (antes o pintor de paisagens Einar Weneger), que partira há algum tempo, convalescente de uma ousada, desejada e malsucedida vaginoplastia.
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Chema Madoz |
PROCURO A MORTE
quero morrer. procuro um jeito. já tentei roleta russa com arma. já experimentei salada parcialmente temperada com raticida. realidade ou fantasia? procurei um matador do bairro. pergunto quanto cobraria pra me matar. ele: não, isso não posso fazer. matar a irmã de amigo, não. insisto. sem convencê-lo, resolvo perguntar: quanto custa matar alguém? depende de quem. como começou na profissão? minha família foi morta numa chacina. comecei a matar pra me vingar. o primeiro foi mais difícil, depois acostuma. passou um tempo, fiz um aborto. abortar é uma mistura de homicídio com suicídio. a gente acostuma. hoje trabalho como cuidadora de doentes e idosos. sempre gostei. meu pai morreu. preciso falar sobre isto.
SELF-MADE WOMAN
Mara, aliás, srta. Marildes, como faz questão de ser chamada depois que se divorciou, é uma funcionária exemplar. dedicada, com iniciativa, mandona. vive para lá do Jardim Ângela. pega dois ônibus todos os dias para vir ao trabalho. 1,5 horas na vinda, 2 horas na volta, todo santo dia. srta. Marildes tem um filho já grande para criar, Huang, quase adulto, que não gosta de estudar; prefere o celular, o videogame, a internet, o tempo todo, todo dia. srta. Marildes ama shopping. gostaria de fazer carreira, mas não teve formação escolar. no início, ainda tentou um supletivo à noite, mas o tempo não deu. conta apenas, pois, com sua força de vontade. começou na faxina, passou a recepcionista (malcriada ao telefone com os clientes – a vida é muito sofrida) e hoje é auxiliar de secretária. trabalha dentro da sala do sócio-presidente. é uma pessoa feliz, a srta. Marildes. gosta de fazer selfies com os colegas. mas se sente um tanto prejudicada. deixou pais e irmãos no Maranhão, na roça, para fazer a vida em São Paulo. a maior parte do tempo, sente saudades.
MÓBILE
a escultura Black Widow (Viúva Negra) de Alexander Calder foi doada ao Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento São Paulo, em 1954, lá estando bem tombada e integrada. o instituto fica à rua Bento Freitas, 306, 4º andar – Vila Buarque. o móbile tem 3,5 m de altura. ontem, 27 de junho de 2015, 97º aniversário do nascimento de Guimarães Rosa, fui a uma conferência de Rafael RG (criador do museu da arte invisível) sobre obras de arte roubadas. a palestra versava sobre o roubo ocorrido no museu da Chácara do Céu, no bairro Santa Teresa, Rio de Janeiro, em 24 de fevereiro de 2006, uma sexta-feira de carnaval. os ladrões levaram as obras Les deux balcons, de Dalí, La danse, de Picasso, Marine, de Monet, e Jardin du Luxembourg, de Matisse. além disso, os bandidos quebraram uma vitrine para levar uma edição de Toros, livro de gravuras de Picasso. a facilidade com que esse e outros roubos são praticados, sugere a Daniel, um dos ouvintes, que alguém possa pensar que a escultura Black Widow, exposta no IAB, talvez estivesse mais segura em sua propriedade privada. então, não seria difícil produzir uma réplica perfeita e, com algum planejamento e ajuda, quando a ocasião se fizesse, retirar o original e pendurar a cópia em seu lugar. essencial, porém, uma questão se impõe. quantos já não terão tido a mesma ideia? quem garante que o móbile de Calder exposto no 4º andar do prédio do IAB, no nº 306 da Bento Freitas, não seja já a oitava ou nona cópia de um original há muito desaparecido?
NO BUTÃO
meu marido tem uma amante. pensei em falar com ele, mas não tenho coragem. para onde eu iria? tem um lugar. minha filha aprendeu na escola. todo mundo é feliz no Butão (em 2006, após pesquisa global, a revista BusinessWeek avaliou o Butão o país mais feliz da Ásia e o oitavo país mais feliz do mundo). em vez de Produto Interno Bruto, só Felicidade Nacional Bruta. você está ouvindo a Rádio Butão? e se tivéssemos isso aqui? e se eu fosse para o Butão com você? você anda muito distraído! é? minha mãe sempre dizia: às vezes, o trem errado leva à estação certa.
GÊMEOS
levito. os pés descolaram do chão. estou como o pobre padre Adelir, que se pendurou em balões de hélio – mil balões de festa coloridos – e desapareceu mar adentro. dizem as afiadas línguas que ganhou o prêmio Darwin por ter se eliminado da espécie. um sentimento me aquece, me torna mais leve do que o ar. eu, balão sem balões. a brisa sopra para o alto, para longe. navego sem instrumentos de bordo além do meu desejo e de meus sentidos. ikrek em húngaro quer dizer gêmeos. palavra crocante. miro a cidade pontiaguda sem saber onde nem como pousar. o padre olhou assim o mar. fascínio e desespero. sou aprendiz.
para Ricardo Rizzo
SOBRE O AUTOR
Ruy Proença nasceu em 9 de janeiro de 1957, na cidade de São Paulo. Participou de diversas antologias de poesia, entre as quais se destacam: Anthologie de la poésie brésilienne (Chandeigne, França, 1998), Pindorama: 30 poetas de Brasil (Revista Tsé-Tsé, nos 7/8, Argentina, 2000), Poesia brasileira do século XX: dos modernistas à actualidade (Antígona, Portugal, 2002), New Brazilian and American Poetry (Revista Rattapallax, nº 9, EUA, 2003), Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 (Publifolha, 2006), Traçados diversos: uma antologia da poesia contemporânea (organização de Adilson Miguel, Scipione, 2009) e Roteiro da poesia brasileira: anos 80 (organização de Ricardo Vieira de Lima, Global, 2010). Traduziu Boris Vian: poemas e canções (coletânea da qual foi também organizador, Nankin, 2001), Isto é um poema que cura os peixes, de Jean-Pierre Siméon (Edições SM, 2007); Histórias verídicas, de Paol Keineg (Dobra, 2014) e Dahut, de Paol Keineg (Espectro Editorial, 2015). É autor dos livros de poesia Pequenos séculos (Klaxon, 1985), A lua investirá com seus chifres (Giordano, 1996), Como um dia come o outro (Nankin, 1999), Visão do térreo (Editora 34, 2007), Caçambas(Editora 34, 2007) e dos poemas infantojuvenis de Coisas daqui (Edições SM, 2007).