quero estar em algum canto da tua memória, em cada momento, em todo lamento
no teu poderia ter sido, onde possa ser um pouco tua dor, saber se sofri demais, ou se depois
por mim, você chorou, quero teu pranto, ser o espanto da centelha surpreendente
que se acende de repente, e como cicatriz deixa a certeza de que voltará
quando entre suas coxas, com os lábios assoprando meus verbos
e desejando seus arrepios, digo que já não sou mais o mesmo
afago seu rosto e bato a brasa no cinzeiro
anoiteço
não ignoro nossas revoluções, apenas as temo, explico isso com cuidado ameno
dizendo que te amo de qualquer jeito, tua lágrima deságua
debaixo da tua tempestade
adormeço
***
é preciso apegar-se à mão de um amigo
a qualquer sinal coletivo de gratidão
a qualquer minúscula evidência empírica de solidariedade
às raras empatias capazes de comungar os homens e as mulheres
é preciso apegar-se às flores e às frutas maduras
e à manga rosa que é as duas
faça outubro ou faça verão
não há outro jeito, compadre
comadre, de algum jeito a insanidade se apossou da razão
e tudo começou quando vendemos o último naco de nossa dignidade
por um prato de arroz e feijão
quem consegue esquecer desse dia?
os olhos abrindo-se fatalmente após uma noite de tormenta fria
ainda assim desejando retornar a ela e matar os sonhos de hipotermia
como esquecer a maré cheia e súbita
ao abrir as duas densas cortinas?
uma de couro e outra de insolência intempestiva
e deixar que a luz inunde as ideias
e da nascente dos olhos verta
a garoa antes seca
de realidades fundas
tão logo trovoem-se os cílios
e do atrito, a fagulha
faz brotar a manhã depois da manhã
numa ressaca de amanhecer
trazendo de volta tanto ontem
trazendo um hoje pra tanto talvez
é preciso acreditar na petulância do adolescente
é preciso acreditar na coragem
do sorriso esperançoso de um velho trabalhador
capaz de vencer as memórias e o cansaço de viver delas
e nelas restar-se um pouco maior
desgarrar-se da brevidade da existência, arrancar-se
das próprias raízes
já abraçadas à morte
para dedicar à vida uma homenagem de quem
caso pudesse
jamais a esqueceria, jamais
a deixaria à míngua
e a ela voltaria
quantas vezes ela quisesse
é preciso creditar o amanhã
aos que ontem acreditaram
é preciso creditar o ontem
aos que acreditaram no amanhã
mas também é preciso creditar a fé
ao presente
mesmo estando ele
mais desacreditado do que a gente
Nascido no sudoeste do Paraná, Junior Bellé publicou em 2010, de maneira independente, “O sonhador que colhe berinjelas na terra das flores murchas”, com não mais que 300 cópias, as quais vendeu por aí, nas ruas e botecos, para amigos e inimigos. Seu segundo livro, “Trato de Levante” foi publicado pela Editora Patuá em 2014.