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Quando o poeta encontra o seu Mefistófeles - trecho do romance "Febre de enxofre", de Bruno Ribeiro

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Mefistofeles1, por Beatriz Carrera, DeviantArt



Quando o poeta encontra o seu Mefistófeles
Um trecho do romance Febre de Enxofre, de Bruno Ribeiro

O começo. O taxista disse suerte e eu bati na porta da Mansão Tomada. Quando as portas grafitadas da mansão se abriram, Beatriz me recepcionou com sua expressão autista e sem vida. Ela me entregou um bilhetinho: mi nombre es Beatriz, yo trabajo para Manuel di Paula. Por favor, me siga. Um lapso de brancura tomou meus pensamentos e me vi submerso em um nada. Caminhamos por um corredor íngreme, o som da chuva no lado de fora embalando os passos, ¿Manuel está aqui? Beatriz riu da pergunta e abriu a boca, mostrando a falta de língua. Um buraco negro preenchido somente por dentes. Continuamos caminhando até chegar ao salão da mansão, onde estavam vários mendigos mudos, bêbados & drogados, pedaços de tubos de ensaio, jalecos melados de sangue, jornais velhos, restos do que já foi uma casa, pedaços de um passado que habita a mente do biografado; Beatriz me levou até a pista de baile, onde Manuel estava ajoelhado ao lado de uma caixa de som. Achei estranho, mas familiar. Ao lado dele, havia uma vaca mugindo. Poeta, ele disse, finalmente você veio. Fiquei em silêncio e assenti com a cabeça. Beatriz se retirou. Não havia mais retorno. Manuel ficou de pé, alisou a vaca e pediu para segui-lo. O fiz como um hipnotizado. Ele me apresentou os aposentos principais da mansão, disse que ela foi abandonada pelo governo e se tornou moradia dos marginais, Manuel assumiu a liderança e organização do lar pelo simples fato de estar sóbrio e limpo; recebe grana pública para manter os desolados vivos através de alimentos, atenção e carinho; eu deixei minha bagagem no quarto e fomos à Sala de Discussão. Manuel me rodeava e gesticulava; olhos brilhando vermelho, apressado, prolixo. Poeta, feliz por você ter vindo, ele disse, pois nós somos a sintaxe do místico: aquele que sempre busca... O inquieto que alimenta traumas para continuar no mesmo lugar, mas seguindo em frente. Rimbaud não abandonou a poesia por ser um fraco, ele a abandonou porque a zerou; um místico nunca se contenta com um único espaço. Por isso ele sempre busca e, quando alcança, procura outros caminhos; um místico é um viciado em estradas, um enfermo maldito, mal dito, porque nunca estará saciado: seus bichos estão pregados como os pregos na mão de Cristo. O fim da estrada não importa para o místico, o percurso sim. Este é essencial. A eterna busca. Por isso você foi escolhido para escrever minha vida. Você deve desligar o apego, o passado, os nomes que lhe marcaram desde então, inclusive o seu e o do todo: só assim conseguirás realmente concluir minha história. Manuel relou o dedo na minha testa e lambeu meu rosto. Ele começou a fuçar nos livros que estavam na enorme estante da sala e pegou um estetoscópio e colocou a campânula no lado esquerdo do meu peito. Fiquei calado. Poeta, eu não escuto nada. Respirei fundo. Eco. Pulmões e corações queimados. Nós conhecemos todos os símbolos do mundo e nós somos fragmentos de arquétipos, eu, Manuel di Paula, sou um inconsciente que habita o lirismo, você me conhece assim como qualquer um que tenha mordido a maçã da vida & morte, qualquer um que habite os poços escuros, aqui em Buenos Aires, onde tu viveste algumas semanas em seu passado obscuro com sua família fragmentada, se encontra o centro indivisível do Eu, o desespero e o gatilho da sua carreira de escritor; essa vertigem que você sente agora, e Manuel tirou sua arcada dentária, mas dessa vez não senti nenhum cheiro terrível o que muito me surpreendeu e chocou, pois sua voz se tornara grave, amplificada, e meu coração martelava a campânula do estetoscópio, mas eu não o escutava e isso me desesperava e já estava arrependido de ter vindo poderia ter ficado na minha cidade no meu lar no meu suicídio constante e continuei escutando sua liturgia, poeta, ele apertou meus cabelos, este transe que passa do meu corpo para o seu é a simples e lógica multiplicação dos demônios que quando se veem precisam se juntar numa legião forte o bastante para combater o Paraíso; isto é o pacto que estás a fazer comigo: o poeta é uma lança contra Deus, uma arma grávida de ódio, ¿mas qual ódio você irá parir? ¿Nosso? Meu hálito o trouxe até aqui, a varanda de que agora você nem deve lembrar mais, já que o esquecimento se fez presente no avião que o trouxe até mim, foi o último suspiro do seu Eu; aquele último sorriso da mãe, a praga do alcoolismo do pai, a família desregulada, um ninho de lesividade que insiste em tentar redimir esse coração caído, mas poeta, não é possível definir, apesar de o gatilho ter sido disparado nos minutos finais da mãe, abra os olhos, e os abri, abra a boca, e a abri, veja-me, e o vi, eu sou o Lazarus que saiu da tumba... ¿O que há em minha boca sem dente?¿Só abismo? Um labirinto de espelhos e dentro de cada reflexo uma luz contendo as Américas, milhões de olhos derretendo, as mulheres da nossa, minha vida, pedaços de cigarros, engrenagens rodando e violentando colossos, três milhões e quatrocentos e quatorze padres loucos invocando Lúcifer para destruírem o totalitarismo do filho Jesus Cristo, desertos equiláteros deslizando pelas gengivas pútridas, longos cabelos negros tornando-se uma só química capilar, nervos de aço, um tumor no cu, cancro mole, pai comendo vinte e duas garçonetes da cidade natal que não lembro mais o nome, a menina que disse que me esperava, ela nos espera, um redemoinho de poetas, um dinossauro em decomposição, sombras me perseguindo, a pobreza em forma concreta: é um mar sem água, e finalmente vi, vimos, minha, nossa morte; no rosto dele, em meu rosto, poeta, coagulam tripa e picos na veia, eu sou aquilo que todos conhecem e temem, admiram e odeiam, dentro das galáxias reproduzem meu nome, na minha boca eu gargarejo escritores e cuspo gênios, eu sou os pingos da chuva que deslizam pelo corpo humano, a projeção do passado, a metafísica do cão, a máquina sem capital, a luz branca do inferno, o deslizar de todas as fezes do mundo: você. ¿O que você fez? Perguntei. Ele tirou a campânula do meu peito, uma fumaça subiu, ele disse: você está pronto. ¿Pronto? Sim, você está pronto para escrever a biografia de Manuel di Paula, poeta. Sentia uma vertigem sem fim, tombava dentro da minha própria constituição humana: perdido. Amanhã começamos. Beatriz o levará até seu quarto. Fui para o meu quarto em ziguezague. Beatriz sorriu, escreveu em um papel buenas noches e saiu. Dormi. Dia seguinte, respirei e fui conhecer essa cidade que não era uma cidade, era uma hecatombe de mim mesmo. De nós. Não havia mais retorno.
A mansão de Manuel di Paula, chamada por todos de Mansão Tomada, é mixada com música eletrônica e de vanguarda 24 horas por dia. Manuel passa as noites remixando e criando novos sets ou alugando sua pista de baile para músicos alternativos. A priori foi incoerente este fato, mas após algumas semanas, por algum motivo, tudo se tornou tão comum que parecia até que fazia parte de mim. Nos momentos de pausa do trabalho incansável do biografado como DJ e produtor musical, ele, na escuridão da Sala de Discussão, contava sua história e me entregava inúmeros documentos, fotos e cartas sobre sua vida. Eu perguntava bastante, principalmente em relação a datas e outras questões pontuais, mas ele omitia e omite muita coisa. Evita dizer quando aconteceram alguns eventos e evita me explicar porque o nome Malena, e principalmente da sua última amada, Luciana, me soam tão familiares. Inúmeras situações da sua vida esfaqueiam minha cabeça, residem em algum ponto que eu tento alcançar com minhas mãos, mas uma espécie de avalanche de neurônios me afoga e eu não consigo alcançá-las. Geralmente quando faço muitas perguntas, o lado esquerdo do meu peito – onde ele me marcou feito gado com a campânula do estetoscópio – começa a arder. ¿Manuel di Paula é um arquétipo de que exatamente? ¿De um vampiro? Ele é aquilo que tanto neguei; negamos: sua vida é minha cocaína, a cheiro sem parar, um vício que injeto, fumo. Não consigo largá-la, por mais que, desde o primeiro dia em que cheguei, minha sanidade ordenou: saia e volte para casa. ¿Que casa? Minha operação é de sacrifício, não é possível voltar, eu até posso retornar para meu lar, ou seja, lá para onde, mas o homem que estará voltando não serei eu, será outro: melhor ou pior, mas outro. E a sanidade que tanto me alertou nos primeiros dias agora se vai, lentamente, como a luz do sol que aparece no canto inferior do quadrado que é meu quarto, à direita de quem entra – Beatriz ou Manuel ou os loucos da Mansão Tomada – e este raio de esperança que some às 19h50min, que pode até ser o único vestígio de vida que me ilumina, aparentemente anda se esvaindo; essa luz e minhas eventuais saídas da mansão – todas lisérgicas e bizarras e incoerentes – fazem com que Buenos Aires seja uma prisão de escritura, onde o único sentido possível de criar e de recuperação da minha sanidade seja através da biografia de Manuel, e o que faço é isso: pesquisar, escrever, reescrever, apresentar a ele, mudar, escrever, pesquisar e perder, pois aparentemente eu não serei vitorioso neste tabuleiro de sinuosas variações insólitas.







Bruno Ribeiro nasceu em 1989, um mineiro radicado na Paraíba. Autor do romance Febre de enxofre (Penalux, 2016). Escritor, tradutor, roteirista e membro da banda Creepypasta. Já publicou em diversos jornais, revistas, blogues e antologias. Autor do livro de contos Arranhando Paredes (Bartlebee, 2014) traduzido para o espanhol pela editora argentina Outsider. Mestre em Escrita Criativa pela Universidad Nacional de Tres de Febrero, editor da Revista Sexus, foi um dos vencedores do concurso Brasil em Prosa, promovido pelo jornal O Globo e pela Amazon, também foi finalista do Prêmio Sesc de Literatura 2016. Edita o blogue: brunoribeiroblog.wordpress.com

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