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ENSAIO DE MAURO GAMA

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DIVERSIDADE DA TEORIA E PRÁTICA POÉTICA NO BRASIL DE HOJE

                                                                                                               
            Há, no tumultuado Brasil dos nossos dias, mais de trinta concepções diferentes do que seja poesia, e de como se deve realizá-la. Estivemos preparando uma história crítica da literatura brasileira e pudemos verificar que essa diversidade é um dos maiores problemas ante qualquer projeto de compreensão abrangente. Isso não acontece em nenhuma das outras fases do discurso poético no país. Recordemos, por exemplo, a relativa uniformidade estilística do romantismo, mas sobretudo do parnasianismo ou do simbolismo, confrontada com a variedade das perspectivas manifestas em 22. Mas, do modernismo para cá, chegamos a uma multiplicidade de direções praticamente incontrolável. Isso pode ser ótimo, pode ser péssimo, pode também não ser nem uma coisa nem outra, e só nos cabe, por ora, tentar a caracterização do fenômeno.
Outros traços típicos do nosso tempo e que, se por certo ocorreram em etapas anteriores, nunca chegaram às proporções ora alcançadas, são: 1) a falta de unidade dentro da obra de determinados poetas individualmente considerados, que poderíamos chamar de “autores-camaleões”, cujos valores e procedimentos se vão alterando completamente com o tempo e a experiência das gerações que se sucedem e 2) o uso da literatura, e especialmente da poesia, com finalidades não estéticas e extravocacionais, como instrumento de poder, de prestígio e status social; em diversos casos, ela é mesmo gabada como uma “carreira”, adquiriu regularidade burocrática, posturas caricatas e interesses corporativos. Embora óbvia herança do já bem estudado bachalelismo beletrista e de Terceiro Mundo, surpreende-nos não só por se mostrar insistente ainda hoje, já no século XXI, como por ter-se tornado, aparentemente, atitude sistemática e bem aceita. É o caso da atriz razoável ou da boa apresentadora de tevê, do professor ou professora aposentada(o), do mercador ou mercadora de livros que, de uma hora para outra, resolve preparar um volume de “poemas” ou “contos”, às vezes um romance insuportável, como quem escolhe um colar especial para determinada recepção, um ornamento social, uma suposta prova de vida inteligente. Iniciativas como essa, evidentemente, contribuem para aumentar ainda mais a diversidade do fazer poético.
Com isso tudo, até para ressaltar alguns modelos da dispersão apontada precisamos, mais do que nunca, de nos deter no texto, no trabalho propriamente dito de cada um dos nomes representativos das muitas vertentes catalogáveis. Inclusive porque o texto, sua matéria e suas propriedades, é o melhor ambiente para se separar o trigo do joio, a obra de arte do capricho circunstancial e sem significado. Ao observar a escrita de um punhado de poetas brasileiros contemporâneos, de um lado percebemos, portanto, que nada bate com nada, que a divergência é a regra principal, que temos diante de nós um imenso limbo de tentativas de todo tipo, que talvez só muitas décadas depois um estudioso possa compreender “qual era” a de cada um, e que verdadeira poesia resultou de tudo isso; e, de outro lado, que essa aparente “liberdade caótica” reflete, afinal, tanto aquela que se pode indicar nas outras artes vivenciadas e exercidas no Brasil atual, quanto a desnorteante indeterminação e anomia crescentes no próprio mundo contemporâneo, ao encarar, entre o terror de Estado e o clandestino, entre as utopias mal concretizadas e o sistema assassino hipocritamente travestido de “arcanjo da liberdade”, a virada do século e do milênio.
            Tentemos então dar nome aos bois ou,  pelo menos, registrar a “linhagem” de cada um (é claro que não incluiremos aqui os nomes consagrados dos grandes criadores do passado recente, como Drummond, Bandeira ou os luminares de 22, e suas influências). Podemos assinalar sem dificuldade, entre os nossos compatriotas de hoje, e em ampla extensão etária, uma poesia: 1) neoparnasiana arcaizante e reflexiva, de moldes conservadores em forma e fundo (Ivan Junqueira, Dante Milano, muitos outros); 2) neomodernista existencial e reflexiva (Rui Espinheira Filho, Mário Quintana); 3) de expressionismo místico e metafísico (César Leal, Ângelo Monteiro); 4) neomodernista no verso branco e incerto, de atitude lírica para com o cotidiano imediato (Adélia Prado, principalmente); 5) sectária e politicamente retórica, tipo “civilização brasileira” (Tiago de Melo, Moacir Félix, Pedro Lira); 6) de recorte cabralino, racional e objetiva, mais ou menos socialmente interessada (em Otávio Mora, p. ex)., mas, às vezes, lírica, subjetiva, como em Marli de Oliveira ou Jairo José Xavier; 7) de lirismo participativo, de traços modernos e notação essencial (Lélia Coelho Frota, Astrid Cabral, Raul Miranda); 8) concretista (Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari, José Lino Grünewald e os demais); 9) neoconcretista plástico-oralizante (uma fase de F. Gullar e outros); 10) neoconcretista plástico-epigramática (Paulo Leminski); 11) de minimalismo naturalista (Manoel de Barros); 12) de minimalismo formalista e pós-concreto (Sebastião Uchoa Leite, Álvaro Mendes); 13)  formalista plástico-estrutural e oralizante (Mauro Gama); 14) de formalismo subjetivo (Elisabeth Veiga), 15) de formalismo objetivo auto-referido (Armando Freitas Filho, Paulo H. Brito); 16) do pragmatismo social-tecnológico e reflexivo (M. Chamie); 17) averbal, imaginística, dita do “poema-processo”, visual, postal, de variados meios expressivos; 18) de influência americana beat e hippy, informalista, de sintaxe desordenada e intencionalmente dispersiva (Leomar e Leonardo Froes, Afonso Henriques Neto, “geração mimeógrafo”, “lixeratura”); 19) de influência americana intimista e confessionalista, voltada para o autobiográfico imediato e coloquial (Ana Cristina César, Leila Mícolis); 20) de intimismo plástico-oralizante (Denise Viana); 21) entre neo-surrealista e pornográfica, às vezes epigramática e de forte “interseção” mais existencial que confessional (poesia “pornô”, Glauco Matoso, Roberto Piva, Cacaso); 22) de lirismo pessimista em torno do cotidiano fisiológico (Fábio Weintraub); 23) de construtivismo neo-simbolista (Alexei Bueno); 24) neoimpressionista, evocativa e auto-referida, comum entre os frequentadores e frequentadoras das oficinas literárias (origina-se, assim, numa espécie de estereótipo teórico); 25) letrística, de apelos circunstanciais ou da moda, de olho no arranjo musical ou nos veículos de massa (numerosos autores);  26) entre pop e neodadá, de assimilação direta do texto comercial e meios semelhantes (“incorporando” prospectos, bulas de remédio, receitas culinárias, excertos dos manuais de instruções etc.); 27) aberta e aleatória, de textos múltiplos, rotativos, “industriais” e assemelhados (experiências muitas, inclusive e sobretudo a de Eliane Zaguri); 28)  cordel “ingênuo” de tradição popular (cantadores); 29) cordelismo ideológico e popularesco (“Violão de Rua”, uma fase de F. Gullar e outros); 30) de formalismo construtivo, estrutural e tecnológico (Alexandre Guarnieri); 31) neoclassicista lírico-satírica (Sérgio Pachá); 32) de lirismo “ingênuo”-reflexivo (Cora Coralina, p. ex.); 33) de um abstracionismo “neoconcreto” (Sérgio Cohn); 34) de neo-surrealismo lírico e organicista (Flávio Castro); 35) do “romantismo” trivial e confessional extemporâneo (“má poesia” provinciana, sentimental).
São estas, a nosso ver, as principais orientações paradigmáticas, as linhas ou matrizes de comportamento predominantes e mais reconhecíveis, assim esquematizadas tão-somente para facilitar-nos a abordagem teórica. Obviamente, poderíamos, ao lado de cada uma dessas linhas de conduta, citar uma série muito maior de autores conhecidos pelo menos no meio (feroz) dos seus “confrades”, mas também seria necessário mostrar as variantes de cada caso, os poetas que se fazem da combinação de dois ou mais desses vetores, e assim por diante.
            De nossa parte, o fundamental, agora, é reafirmar a nossa opção voluntária e involuntária dentro dos caminhos acima consignados e procurar resumir os tópicos essenciais da posição que assumimos nesse campo. Para nós, o poema: 1) é síntese necessariamente estética e necessariamente verbal (de emoção e razão; de imaginário e real; de uma visão de mundo); 2) é criação de ritmos, de figuras ou tropos, de linguagem não-lógico-discursiva, mas de sugestão e conotação; 3) é objeto gráfico e autônomo, na página; 4) não tem nada a ver, diretamente, com a “vida particular” do autor (CDA: “os incidentes pessoais não contam”, ou “não me reveles teus sentimentos”): quanto mais impessoal, melhor; 5) é busca de nova linguagem, num contexto histórico e sociocultural (sim: cada conjuntura tem os seus discursos, suas constantes vocabulares, seus estigmas, suas formas ou suas deformações: a literatura, e particularmente a poesia, só tem sentido se conseguir expressar “novas saídas” para a língua e a comunicação de sua gente; para ficarmos só no português, notemos que isso vem acontecendo desde um Sá de Miranda, ou de Camões).
Nesse sentido, a ideologia de um autor é componente indispensável. Não a ideologia no sentido da orientação política. Uma vez escrevemos sobre a importância da ideologia (seja qual for) no poeta e alguns nos caíram de pau, repetindo aquelas coisas em torno de que a “ideologia já era” etc.etc. (pensaram em comunismo, fascismo, sei lá o quê). Ora, quando tratamos do ideológico estamos incluindo até o fetichismo de um hotentote. Estamos, pois, empregando o conceito no sentido hegeliano de “consciência desgarrada” (Ferrater Mora). É inestimável, no poeta, um rico espectro ideológico, ou seja, uma visão bastante ampla e imaginosa, mitificante, de si mesmo e da realidade contextual (se, em vez disso, há um complexo sistemático de idéias e explicações, uma teoria da realidade, o terreno é do filósofo, não é do poeta ou da poetisa). É mediante este instrumento (tanto mais produtivo, quanto mais original e engenhoso) que ele estabelece sua relação com as pessoas, com a natureza, com o universo, e tende a expressá-la criativamente.
            A poesia não se expande, entre nós, numa época favorável. O Brasil foi atropelado pela comunicação de massa muito antes de sequer se alfabetizar sofrivelmente. Assim como muitos aqui e em nosso tempo viram televisão antes de abrir um livro, outros tantos, agora, mergulham na informática sem saber nada de português e muito menos de suas literaturas. Há jovens poetas brasileiros (e colunistas de jornal), na atualidade, que não passariam numa prova de ortografia e sintaxe de seu idioma natal. Isso é um fato de significado assustador e, na realidade, sem precedentes.
            Como a literatura, não “dando Ibope”, fica longe dos refletores, cada vez mais nos faltam estudos e avaliações do que vem sendo feito. Não se pode julgar, criticamente, com base no desfile das vaidades ou do leilão de privilégios. A própria “Geração 45” é mal conhecida. É  mencionada como se fosse um aglomerado bem definido, uma escola de princípios estabelecidos, e não é nada disso, tem de tudo, pode ainda abrigar um ou outro gênio arredio e nada compreendido, conta com místicos e realistas radicais, pairando sobre todos os seus representantes (e sobre as gerações seguintes) a sombra de um dos poetas mais originais do século XX, o mais moderno e mais brasileiro dos artistas do verso, João Cabral de Melo Neto. O leque se abre, e se espatifa, a partir da “geração 60”, para a qual há pelo menos um bom subsídio bibliográfico, Sincretismo, a poesia da geração 60 (1995), de Pedro Lyra (há quem diga: “não era uma geração, pois não tinha homogeneidade” como a de 45: já indicamos o contrário quanto a esta, e geração, como lembrou o próprio Cabral, é fato inelutavelmente cronológico). Falta material sistematizado sobre o pessoal que se afirmou na década de 70, “geração mimeógrafo”, lixeratura e outras denominações, podendo-se dizer o mesmo do pessoal das décadas seguintes, de 80 a 2010. É preciso reunir esses acervos e peneirá-los, deixar de lado a ganga bruta, organizar o panorama existente para um exame de crítica estética e textual, sem tráfico de influência e sem conversa fiada. Afinal, nem sempre chegamos ao entusiasmo de um Novalis (“A poesia é o autêntico real absoluto”), mas podemos “Ver em la muerte el sueño, en el ocaso/um triste oro, tal es la poesía/Que es inmortal y pobre. La poesía/Vuelve como la aurora y el ocaso (Jorge Luis Borges).”

                                                   Mauro Gama, Quinta da Janaína, 2004 e 2013


imagem: Sarolta Bán


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Mauro Gama
O poeta e crítico literário Mauro Gama nasceu em 1938, no Rio de Janeiro. Estudou letras clássicas e ciências sociais, em que se licenciou pela UERJ. Estreou em livro com os poemas de Corpo verbal (1964). Ganhou a vida como redator de editoras e obras de referência, entre as quais cinco enciclopédias, como a Barsa 1, a Mirador internacional (onde foi assessor editorial de Otto Maria Carpeaux e Antônio Houaiss) e Barsa 3. Trabalhou na primeira fase do Dicionário Houaiss e colaborou na imprensa carioca, sobretudo em revistas da Bloch, no Jornal do Brasil e O Globo. Auto-exilado de sua grande e violenta cidade, vive hoje  em sua Quinta da Janaína, em Mendes/RJ. Outros livros publicados: Anticorpo (1969), poemas, Expresso na noite (1982), poemas, Zoozona seguido de Marcas na Noite (2008), poemas; José Maurício, o padre-compositor (1983), ensaio; Michelangelo – cinqüenta poemas (2007: tradução para o português coetâneo e estudo crítico; Prêmio Paulo Rónai da Fundação Biblioteca Nacional).



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