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Ilustração: Gordon Pullar |
1
Antero encontrou-se no jardim. Chegou até ali instintivamente, como se o seu corpo automatizado se movesse. Sentia-se perdido. Sentia-se verdadeiramente só. Olhou para trás, ninguém. A certeza de ter ouvido bem atrás de si «envelhece» perturbava-lhe. A voz estava próxima, sentiu-a. Mas não havia boca alguma que pronunciasse tal palavra.
«Envelhece»?
Todo o seu corpo estremeceu. O apelo da solidão era forte. A promessa de um refúgio, sedutora. Mas essa voz que o atormentava com «envelhece» causava-lhe uma horrenda indecisão.
Antero sabe que toda a história tem um fim. E quem o define é o autor, não alguma força superior, algum deus encoberto no céu. Antero era o autor da sua própria tragédia e, como tal, competia-lhe o último ponto final. E seria nesse mesmo dia, nesse mesmo jardim, perante um público desconhecido, que Antero iria escrever o último parágrafo da sua história – porque o público anónimo é aquele que melhor nos sabe ler.
Um final é escrito conforme o enredo. A história em si, por ser uma tragédia, no caso de Antero, deve terminar com a morte. Mas, aquela voz que lhe sussurra «envelhece» pede-lhe para alterar o final já traçado por outro que seja contínuo no tempo.
Se atravessar um jardim no auge da primavera sem distinguir o verde amplo sobre o barro húmido daqueloutro no topo da árvore, a luz flavescente de um candeeiro de rua da que ilumina o quarto com o indivíduo no parapeito da janela, se não fizer diferença sucumbir aqui mesmo ou trancado num quarto, então, por que não?
Antero sentou-se no banco. Enfiou a mão direita no bolso da gabardine, dele tirou um revolver que sabia estar carregado. Virou o cano da arma para si e enfiou-o na boca. Disparou.
2
O estrondo fez com que Antero despertasse. Acordou em sobressalto. Uma estranha força projetou-lhe o tronco para a frente, erguendo-o sobre a cama, apoiado sobre os cotovelos. Lançou olhares ao redor. Reconheceu a mobília, a porta, a alcatifa. Estava na sua cama. Estava no seu quarto. Mas, como? De súbito, apalpou os lençóis em alvoroço. As mãos tateavam os panos em busca da mancha de sangue. Tinha a certeza de estar morto.
Sem sair totalmente da cama, Antero debruçou-se sobre esta para investigar ao redor. Nada. Nenhum vestígio de ali ter ocorrido um crime. Então pensou: «dentro do homem existe um deus desconhecido. Será o homem um Deus que se ignora? Oh, Deus, no céu, não existe. Não! O destino é escrito pelo poeta-filósofo. Jesus? Sim, Jesus foi um filósofo. E nada mais do que isso. Um pensador que inspirou a poesia de apóstolos seus discípulos. Não. Sim. Deixa cá pensar. Também Jesus foi um deus, por ter sido homem. E foram homens-deuses que escreveram a Bíblia – esse magnífico exemplar de boas poesias. Estarei vivo por milagre, ou descobri o segredo do tempo?»
Estava Antero abstraído nos seus pensamentos quando ouviu murmurado, o bafo húmido na nuca, tão perto que parecia que a voz lhe saíra do interior do corpo, «envelhece».
Antero lançou as mãos à cabeça. Cobriu-a com os braços, como quem se protege de um objeto que lhe é arremetido à toda força, e com reflexos instintivos procura minimizar os estragos no corpo ante o perigo. Depois, Antero abrigou-se nos lençóis, tapando totalmente o corpo, deixando a imagem de um homem encolhido em posição defensiva, furtando-se aos seus medos. Poucos minutos passaram, e timidamente Antero descobriu o rosto.
3
Ler liberta o pensamento. A sensação de estar num mundo vago, distante do plano fixo que lhe compete, entre a natureza estática e física rodeada por seres corpóreos que se comportam como a Natureza ordena, só a literatura lhe proporciona. Sem o sonho, Antero nada é. Ideias e imagens apresentam-se-lhe ao espírito quando à condição de leitor se entrega. Antero fantasia. Antero devaneia. Antero inspira-se. E regressa ao mundo material com apreensões. Escreve sobre reformas, sobre progresso, enfim, sobre um Mundo Novo. O mundo que descobriu nos livros quere-lo partilhar com os seus semelhantes. Mas Antero não tem semelhantes na terra onde vive.
Antero sonha quando dorme e quando está acordado. Em casa, nos transportes públicos, caminhando, a ficção cruza-se com a realidade bem diante da sua faculdade de sentir. E sente. Sim, como sente. Alegra-se com a criança que passeia com o pai. O amor de um e de outro unem-se num apertar de mãos sincero onde não há correntes que aprisionem tal gesto num conceito de namoro. Sente-lhes a liberdade. E quando a criança solta a mãozinha para correr atrás do rouxinol que deambula arrastando a pata esquerda, agarra-o, repara na lasca, liberta-o da dor, gentilmente pousa-o no chão, ele voa, ela deixa-se ficar quieta. Depois olha para trás. O pai vem caminhando devagar. E então lá vai ela correndo ao encontro de quem ama. Entrega-lhe a mão. Os dois seguem passeando pelo parque.
4
– Dentro do homem existe um deus desconhecido. Não sei qual. Mas existe.
– Dentro do homem está o reino dos céus, Antero.
– Não será Deus um homem que se ignora?
– O homem não é Deus.
– Jesus foi um deus, porque foi um homem.
– Jesus não tentou compreender Deus.
– Através da filosofia, do pensamento, Jesus descobriu o segredo do tempo. O messias era, na verdade, um filósofo.
– A fé não é compatível com o raciocínio.
– Diz-me, há mesmo um segredo do tempo, certo? E os que o conseguem desvendar vivem eternamente…
– Deus disse: «Buscar-me-eis e me achareis quando me buscardes de todo o coração».
– Há um mistério que preciso revelar. Um mistério que me leva à melancolia. Não é um milagre, não, não é esse ideal comum. Quero desvendar o segredo do tempo. Que mal há em o homem ter consciência de ser um deus?
– A tua consciência te condenou, Antero.
– Vem às vezes sentar-se ao pé de mim… vem ter comigo, às horas duvidosas, uma visão, com asas de cetim. Pousa de leve a delicada mão (reconhece aroma a noite sossegada) pousa a mão compassiva e perfumada sobre o meu dolorido coração. E diz-me essa visão compadecida (há suspiros no espaço vaporoso) diz-me…
– Porque é que choras silencioso? Porque é tão erma e triste a tua vida? Vem comigo... habito ali, e tu virás comigo… porque eu venho de longe em tua busca, trazer-te paz e alívio, pobre amigo.
Sentado no banco do jardim, Antero enfiou a mão direita no bolso da gabardine, dele tirou um revolver que sabia estar carregado. Virou o cano da arma para si e enfiou-o na boca. Disparou. Morreu.
Do livro de contos “O diário poético de um empregado de balcão”, que saiu no ano de 2015 pela editora Esfera do Caos, em Portugal.
DIDIER FERREIRA.Nasceu em Luanda em dezembro de 1985. É também nacional de São Tomé e Príncipe e residente em Portugal há mais de vinte anos. Licenciado em Estudos Portugueses e Lusófonos pela Universidade Nova de Lisboa, onde frequenta atualmente o mestrado em Estudos Portugueses. É fundador do movimento Jovens Poetas Vadios, com o qual tem vindo a realizar, desde 2008, diversas sessões de poesia em escolas, universidades e associações culturais. O diário poético de um empregado de balcãomarca a sua estreia na ficção de género contista.