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Conto de Mariel Reis

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Uma Bobagem como Essa


 Arranjou um caso na semana do carnaval. (Recorreu a duas ou três palavras. Nenhuma parecia salvá-lo do silêncio daquela figura sentada à sua frente. O silêncio com sua comunicação se encarregava em transmitir seus impulsos através dos gestos da mulher, tão pequenos, que se não estivesse sendo observada com tanto cuidado, julgaria que não havia se movido.)

A mulher combinou vestir a cada dia uma fantasia diferente e ele teria a obrigação de reconhecê-la no meio do salão repleto de mascarados. (Entretanto, a maquiagem um tanto desfeita indicava que a noite anterior ela havia passado na companhia de outro homem. Ou se misturado ao tumulto tão comum à cidade àquela época: o carnaval.) Ele sem ter o que negociar, aceitou. (Os indícios não a salvavam do olhar do seu observador. Numa nova tentativa, procurou ser amigável, acenando com a possibilidade de um café.)

Na noite marcada lá estava ele no salão, atento, vigilante tomava conta de tudo. (Ela, no entanto, detinha-se nalgum canto da memória, absorvida. Tragada por lembranças em que ele se sabia excluído. Ao mundo onde ela estava ele não tinha acesso, provavelmente se referia à noite anterior. Talvez gozasse as delícias experimentadas nos salões; seus  olhos extáticos, mergulhados num negror profundo, fixados no centro de uma afetividade distante, perdiam-se além daquelas paredes.) Não saberia distingui-la se ela resolvesse  cobrir o corpo por inteiro. A memória queria ajudá-lo trazendo à lembrança detalhes, trejeitos, maneirismos. Um leve adejar de mãos num gesto; a movimentação dos olhos como capturando alguma coisa; certa eletricidade nos quadris. Porém fantasiada como ela estaria, afugentar-se-iam os detalhes distintivos e o reconhecimento seria impossível. (Toda aquela turba de homens fantasiados; aquelas mulheres em trajes sumários; os cordões; todo o tumulto de corpos engolidos pela agitação que remove dos corpos a identidade, fundindo-os numa massa compacta, única, de uma só vontade. Sim, talvez fosse lá que ela estivesse todo o tempo. Nalgum lugar entre os foliões. Arlequinando.)

Foi ao banheiro lavar o rosto, nenhuma idéia o salvava da aflição em que estava metido. “Olha, confio que você saiba me distinguir da multidão, afinal serei única, uma rainha absoluta. E só seus olhinhos poderão enxergar meu brilho sem cegar”. (Deslizando os seus olhares para onde houvesse um impulso qualquer que pudesse levá-la a um sonho, a esquina de um mundo construído por todos os mascarados. E nele ela estaria a salvo. Livre da doença, da miséria e da morte. Livre da própria consciência de existir, que é maior do que qualquer tormento.)

Ele concordou, porque não havia uma opção melhor. Ela levantou-se, despedindo-se com um beijo. Saiu do banheiro. E era como se estivesse cego. Nada o ajudava a distinguir no meio da turba a mulher com quem havia se envolvido. (Emprestando o seu corpo a todos. E a sua boca palavras mais impróprias. Afinal o carnaval também era isso: um intervalo. Seu observador sabia que ao vê-la ali, não devia confiar em pensar conhecê-la. Ali ela era uma das muitas que projetara, uma das cinco mil mulheres que adejam no seu interior, todas com seu corpo e rosto, todas diferentes. Como reunidas em suas semelhanças e delas nascesse outro ser em si idêntico ao que já possuía; no entanto, diverso na aparência ostentada). Percebeu alguns mascarados detendo-se em espreitá-lo. E a cada um chamou pelo nome dela. Desviavam-se à medida que percebiam não se tratar de nenhum deles. “Você não se engane, por favor!”. “Senão tudo estará acabado”. Exasperou- se. (Imóvel o seu observador também se entregou aquele jogo.) O salão, vazio. Se ela esteve por lá não despertou sobre si suspeita por querer ver-se reconhecida. Ele, impotente, percorria-o de ponta a outra. Chamando-a aos berros. (Talvez encontrasse a resposta de tudo nele, da incomunicabilidade daquela mulher, do mundo em que não possuía senhas para entrar.)

O salão vazio testemunhava o seu fracasso. Na outra manhã, ela displicente telefonou:
     “Você foi lá?”

     “...”

“O gato comeu a sua língua?”

Ele se apressou em desculpar-se. Tinha toda a culpa do mundo. Não conseguira reconhecê-la em nenhuma das mulheres. Sim, merecia ser abandonado; não fora capaz de distingui-la.

“Seu bobo... Não pude aparecer por lá. Minha mãe sentiu uma indisposição e tive que lhe fazer companhia.”

Ele lentamente desceu o fone ao gancho. Prometendo a si que nunca mais juraria a ninguém uma bobagem como essa.

*   *   *

Mariel Reis (Rio de Janeiro, 1976) é originário do limítrofe bairro carioca da Pavuna (vizinho à baixada fluminense), graduou-se em letras pela UERJ e integrou os conselhos editoriais das Revistas Confraria do Vento e Paralelos. Seus livros lançados são "Linha de recuo e outras estórias" (2005), "John Fante trabalha no Esquimó" (2008), "Cosmorama" (Poesia, 2009) e "Vida cachorra" (2011), este último com prefácio de João Anzanello Carrascoza e quarta capa de Paulo Lins. E-mail: marielreis@ig.com.br

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