Levar o amor ao prelo só garante a impressão”, de Tiago D. Oliveira (Poemas)
a carta
I
Tu deseoes que los objetos se mantengan em silêncio
Aníbal Cristobo
um elefante branco
se tudo fosse a fotografia. não.
havia um pequeno elefante branco
sobre o criado mudo e a carta.
não. também não era a carta.
dentro do segundo parágrafo,
um único e fresco borrão,
ou um pingo de chuva, ou não.
uma lágrima. isso.
uma lágrima era tudo o que tinha.
que podia até ser minha, mas não.
havia algo a mais dentro
daquele momento
tornando, como os pingos de chuva
de uma noite inteira. se tudo
fosse a fotografia. não é
possível separar nada agora.
se tudo fosse a fotografia,
enquanto esfrego a ponta dos dedos
no pequeno elefante branco,
como uma lâmpada mágica
a carta
você só tem direito a um desejo,
um palito de fósforo, uma canção,
um copo, uma única bala. depois
do desejo há mais desejo. do fogo,
mais fogo a definir a respiração,
o cava de uma partida de buraco
quando estás a dormir.
os joelhos dobrados
abraçados ao peito
são meus.
os olhos
no teto,
a respiração seguindo atenta
as nuvens, atravessando
a luz
da lua
a pedra
há uma pedra caindo
sobre as nossas cabeças.
não a vemos quedar
seus poros defeituosos
que guardam silêncios.
sobre ela, um céu
de translucidez palpitante,
para onde estamos a olhar
a porta
logo que sentimos a pele do outro,
a nossa posse, o sentido do mundo,
nos perdemos – aí reapareces.
eu saía e você entrava
na última seção do cinema.
os cumprimentos não existiram
(ou há soco ou frescor)
mas você me disse ainda
em um mesmo trânsito:
não era para falar
que me amava na hora do gozo
a faca
vejo mãos pequenas
cortando as cebolas,
olhos grandes e cerrados.
uma força conseguinte
da lágrima involuntária.
ao falhar entrega-se
à força das correntes
que desabrigam e levam,
não há beleza maior
II
Mas tarde pensarás “deseo que los objetos y lasapariencias se mantengan em silêncio” y a medida que lopienses irás deslizandote em laoscuridad.
Aníbal Cristobo
a cuba de gelo
nosso querer é de pétalas
correndo a calçada
sob a chuva da tardinha.
ainda que tenhamos
um do outro
a infância perdida
no tato,
dedicamos demasia ao tempo
em que olhamos para o sol
acarinhando alguma queloide
dada ao sufrágio de nossas intimidades.
levamo-nos ao prelo
de orelha a orelha.
o que nos trouxe até aqui
retorna para o onde em que veio
quando decidimos partir.
a cuba de gelo fora do congelador
uma garrafa de vinho
há uma garrafa de vinho
entre nós.
a porta batida,
o relógio caindo,
a janela aberta
a ¼ para o meio-dia,
para desfazermos as malas (mudamos
há sete anos, a idade dos ladrilhos
que nas manhãs de sábado ornávamos
as nossas paredes do quarto) a ¼
de algum lugar nos dias.
ficou a janela aberta e uma garrafa
entre nós
Tiago D. Oliveira, de Salvador-BA, professor e pesquisador, estudou letras na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e na Universidade Nova de Lisboa (UNL). Tem poemas publicados em blogs, portais, revistas e jornais especializados como Avenida Sul, Canal de Poesia, Cronópios, Cultverso, Enfermaria 6 (Portugal), Escamandro, Hyperion (UFBA), Musa Rara, Revista Saúva, Janelas em Rotação e Jornal Livre Opinião. Em 2014 teve seu primeiro livro editado de poesia, Distraído.
E-mail: tolidiasum@gmail.com