ENQUANTO DORMES
Fabrício Marques
Imagem: Alexey Titarenko
Enquanto dormes, sem que percebas,
reparo teu sono: teu corpo, meu mundo.
a luz da arandela incide sobre a movimentação
rochosa do granito, o quarto mudo,
eu me pergunto: o que se passa? Teus
200 ossos a me convocar em vário ritmo:
a carne é franca. Ossos não mentem,
a carne é franca, a repetir num rito.
Ave, palmas breves; ave, flexor do hálux;
salve, pectínio: tua pelve, minha praia.
E no tumulto do sangue, ave, valva;
salve, átrio; e se joguem na pista, na veia, na raia.
Enquanto dormes, amo teu esplênio,
o escaleno anterior e o posterior, dando voltas
- o que se passa? As articulações estalam,
um involuntário sorriso: teu riso, mil volts.
Muito acontece enquanto dormes:
vértebras e tendões se entendem, sem áporos;
músculos profundos dialogam,
e amo tudo o que se passa sob teus poros,
aqueles mesmos que envolvem, lâminas de tecido,
teu corpo, e respiras, entreaberta fresta,
e me convidas para a algazarra de seres vivos
a que serves de abrigo: teu corpo, uma festa.
O movimento rápido dos olhos. O movimento
rápido das pernas. Pra que tanta pressa,
meu Deus? Se fatalmente te sei por um
és-não-és, digo, por um triz, tão presa
a mim e ao mesmo tempo tão alheia
ao meu lento escrutínio: teu sono, meu garimpo.
E, não só com os olhos, mas com todos
os sentidos, teu corpo desço e grimpo
Súbito, me lembro: hoje, mais cedo,
comeste fruta gogoia. A lembrança brusca
do alimento se aventurando por teu corpo,
a começar do véu palatino, em busca
de sossego, de um final remanso onde se dissipe
(o que se passa?) em breves rusgas
enquanto dormes, e é estranho, mesmo para mim,
o crescimento imperceptível de rugas
e distraio-me por um segundo, mas retorno
a teu corpo, que nunca é o mesmo: meu pódio
acolhendo uma grande família: prócero,
esplênio e ilíaco, amo vocês, sem réstia de ódio.
Teu corpo em repouso, a carne é franca
e fracas são as horas em demasias de relógio.
Aqui, neste quarto, sob o comando de lobos
e hemisférios, enquanto dormes elogio
teu corpo em repouso, uma senha - não
para confundir as leis que regem teu sonho -
mas para salvar a desusada emoção
com que penetrei fundamente no teu sono
pois sei que estás para acordar, e a mim
só resta o arrepio do toque, apenas sobra
o gesto de deitar em teu colo, doce
e úmida província: teu corpo, minha obra,
aquela mesma que com mil chamas
permanece alheia a um mundo em que tudo ruísse
e ainda assim vibrássemos em paz,
até que despertasses, e o teu corpo todo risse.
***
Fabrício Marques nasceu em Manhuaçu, Minas (1965). Publicou Samplers (poemas, editora Relume Dumará, 2000, Prêmios Culturais de Literatura do Estado da Bahia), Aço em flor: a poesia de Paulo Leminski (ensaio, Autêntica, 2001), Meu pequeno fim (poemas, Scriptum, 2002), Dez conversas (entrevistas com poetas contemporâneos, edição bilíngüe, Gutenberg, 2004), A fera incompletude (poemas, Dobra Editorial, 2011, finalista do Jabuti e do Portugal Telecom) e Uma cidade se inventa (ensaio-reportagem, Scriptum, 2015), além dos livros para crianças O zoológico da Sofia e O pequeno livro dos recordes (ambos pela Aaatchim!, 2013). Este poema está em seu novo livro, A máquina de existir, que deve ser lançado no início de 2017. E-mail: marques.fabricio@gmail.com.