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A Casa de Driele - Bruno Bandido

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Ilustração: Ashlita



Meu velho tava sempre trabalhando no campo e quando tava em casa bebia demais. Minha mãe, bem, uma galeria infinita de homens entrava e saía da nossa casa enquanto o velho trabalhava no campo. Não eram pais tão maus, não como esses pais horríveis que a gente vê por aí. Mesmo assim, sempre que eu parava pra prestar atenção nos dois, na hora da comida ou na missa de domingo, eu olhava bem pra eles e meu estômago revirava e minha garganta fechava de um jeito que parecia ter um bolo entalado nela.
Eles iam me fazer uma festa de aniversário e eu tava caminhando pela vila com um convite na mão procurando Driele. Andei pelo campinho de futebol, pelos balanços e gangorras e acho que foi a única vez que quis encontrar com ela e não consegui. Ela não era do mesmo colégio que eu – na verdade, nem sei de que colégio ela era, mas a gente sempre se batia pelo bairro e ficava conversando até ela cansar. Tá na hora de você ir pra casa, ela dizia, como se fosse uma senhora, e eu me despedia com a sensação de que podia passar a noite toda na rua, conversando com Driele, e não sentiria frio nem fome, na verdade, eu ficaria bem satisfeito. Começou a chover, fiz um barquinho com o convite e o coloquei pra rodar na sarjeta. Era o único convite que eu ainda não tinha colocado fora. Minha mãe me entregou quinze pra dar aos meus colegas, mas eu também não gostava muito deles.
A festa foi só com os amigos dos meus pais e os vizinhos. Joguei videogame por um tempo com os filhos deles e depois de assoprar as velas resolvi dar uma volta no quarteirão. Meu pai tava começando a falar alto e de um jeito esquisito e minha mãe não conseguia disfarçar a tristeza por nenhum colega meu ter aparecido, acabei me sentindo culpado por ela ter feito todos aqueles docinhos. Na quarta ou quinta volta, avistei Driele na praça do Posto de Saúde. Gritei e corri até ela. Oi, eu disse, hoje é meu aniversário. Nove anos, né?, ela perguntou e eu balancei a cabeça. Eu lembro o dia em que você nasceu, ela disse. Mentira, eu falei. É sério, foi o dia que eu cheguei aqui em Pedra Boa. Tu era só um bebezinho, eu disse. Ela riu. Contou que a primeira coisa que fizeram foi ir ao hospital e enquanto a velha enfaixava os pés ou coisa do tipo, ela percorreu os corredores superlotados. Minha mãe sempre contava essa história, no dia em que nasci, o principal restaurante da cidade vendeu uma salada de batata com maionese caseira e todo mundo teve salmonela. Ela seguiu falando. Disse que viu meu pai chegar no hospital correndo, reivindicando sua paternidade e perguntando por mim, ela o seguiu e quando ele entrou no quarto e me pegou no colo e me beijou chorando. Eu não conseguia imaginar meu pai com esse tipo de alegria, na verdade, as únicas vezes em que ele perdia a seriedade era quando o Inter fazia um gol ou passava Chapolim Colorado na TV. Fiquei quieto, me perguntando por que ela tava inventando esse tipo de coisas. Driele não costumava ser cruel, não desse jeito. Meus olhos encheram de lágrima e eu me virei de costas. Você acha que eu tô mentindo, né? Vem, vâmo lá em casa, ela disse.
Ainda não conhecia a casa dela. Entramos seis quadras mais pra cima vila e todos os cachorros de rua que cruzaram com a gente começaram a nos seguir. Eles são meus, ela disse. Eram uns seis e ela falou o nome de todos (naquela época não reparei, eram bíblicos). A tia dela tava sentada no sofá comendo pipocas em frente à TV desligada. Se vestia como uma freira, devia ser uma freira, só que nunca tinha visto ela na igreja, e eu tocava violão lá todo domingo. Ela não esboçou reação quando desejei boa tarde, Driele me levou direto pro quarto. Não tinha nada nele além de uma mala fechada e um colchão. A gente tá indo embora, ela disse, a gente já ficou muito tempo aqui. Mordi a parte de dentro das bochechas com toda força e consegui não chorar dessa vez. Ela abriu a mala e tirou uma pequena bolsa. Queria me mostrar uma foto. Era ela abraçada com outra freira. Essa foto foi lá em São Paulo, ela disse, já tem uns vinte anos. Fiquei olhando um tempão. Driele tava com o cabelo cacheado, mesmo assim era ela. A freira era bonita e sorria pra câmera enquanto Driele fazia careta. Tá reconhecendo minha tia?, ela perguntou. Viu, ela envelhece, eu não, eu fui no hospital, as pessoas tavam doentes e seu pai parecia tão feliz que me deixou triste por não ter um desses pra mim. Fiquei confuso, saí correndo do quarto, a freira ainda tava na sala com suas pipocas e aposto que não notou movimento algum, os cachorros, deitados na calçada, latiram todos quando fugi.
Minha mãe escutava Roberto Carlos e limpava a bagunça da festa na garagem. Fui pra sala escondido. Pude escutar os roncos do meu pai no corredor. Entrei no quarto e fiquei vendo o velho dormir. Imaginei a felicidade dele, o seu choro. Eu nunca tinha visto aquele velho chorar e, naquela altura, já achava que era impossível um homem ser feliz. Por algum momento eu pensei que tinha mesmo um grande pai. Fiquei passando a mão pelos cabelos dele, pensei em voltar na casa de Driele e pedir desculpas no dia seguinte. Então lembrei que elas podiam já ter ido embora, me imaginei entrando na casa vazia, nem Driele nem a freira nem os cachorros no caminho, algumas pipocas caídas no sofá, a foto das duas esquecida no chão – um frio subiu pela minha barriga e me arrepiou todo. Eu esperaria os velhos dormirem e iria naquela noite mesmo. Eu me despediria dela em paz e depois teria que me acostumar a me sentir mais sozinho que o de costume.
Ah, tu tá aí, minha mãe disse na porta do quarto. Tirei, num pulo, a mão dos cabelos de meu pai. Ela riu. Deita com a gente, disse. E me puxou pra cama. Mãe, eu disse, o pai ficou feliz quando eu nasci? Ué, claro que ficou, minha bolsa estourou duas semanas antes do que o doutor Nereu tinha previsto e teu pai tava no campo. Só descobriu que tinha um filho quando chegou em casa três dias depois e te viu no berço, dormindo. Ela seguiu falando, parei de prestar atenção e fui levantando da cama, queria correr até Driele agora mesmo, queria empurrar Driele, gritar com ela, e só de pensar nisso meus olhos encheram de água. Não, fica com a gente, a mamãe tava com saudade, tu sumiu!, ela disse e me abraçou. Ficou me fazendo carinho, fechei os olhos pra não mostrar o choro e, aos poucos, as lágrimas lá dentro começaram a tomar formas nebulosas, como as nuvens, mas na escuridão, primeiro vi um cachorro, depois algo como uma garrafa de cerveja, cores apareceram, um homem pegou a garrafa e ficou dançando com ela, como se fosse uma mulher – adultos que eu não conhecia sorriam em volta, os cachorros de Driele foram chegando um por um no que era a mistura da nossa garagem com o salão de festas da nossa paróquia, o ronco do meu pai e o carinho de minha mãe continuavam, lá no fundo, eu ainda podia sentir.


Publicado originalmente no projeto Dia Zero.



Bruno Bandido nasceu em 1990, na fronteira com o Uruguai, passou pro Porto Alegre, Salvador e hoje mora em São Paulo com sua mulher e mais dois vira-latas. Em 2014, lançou o livro de contos Tem um palhaço agressivo e um hooligan triste em algum lugar aqui dentro pela editora Bartlebee. Este ano, seu conto Fonte do Boi foi publicado pela Bar Editora. Também prepara um livro de poemas chamado Histórios de Gólgota. Escreve no blog brunobandido.wordpress.com.


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