Quantcast
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

A poesia de Zélia Guardiano



LONJURAS

São as lonjuras
Que me desanimam
Que me detêm:
Mais
As da linha do tempo
Que as da linha
Do trem



SÚMULA

Eu:
Bentinho

Vida:
Capitulina

Um 
Escobar
Em cada esquina



TARJA PRETA

Qual o quê
Alprazolan:
Deixo
Um resto
Do desespero
Para amanhã



PRESTIDIGITAÇÃO

Quero
Régia cortina
De fatos
A separar-me
Da ilusão:
Lá na frente
Fique ela
Com seus truques
Simulando o levitar
Da plateia
E da trupe

Cá atrás
Eu
Com os pés no chão



NO MUNDO DA LUA

Atabalhoada
Fiquei
Quando a nave
Alunissou

Algo assim
Como se eu fosse
Um quarto astronauta

Cumprida a missão
Os três voltaram

Eu não



CONCRETUDE

Uma tristeza
Tão densa
Que dá pra cortá-la
Com faca
Fazer fatias 
Jogá-las 
N'água corrente

[Quem sabe
Alimento a carpa 
Valente
Que
Saltará cascatas
Até o topo de tudo
Transformando-se
Em dragão]



HIPOCONDRIA

Doença enjoada
A tal hipocondria

Nunca identifico
A causa
Se meu coração
Palpita:
Sopro aórtico
Ou a lua tão bonita?



HOMENS TRABALHANDO

De vez em quando
O teto desaba
Mas
Não 
Completamente:
Ficam as vigas

Talvez
Por isso
Valha a pena 
A vida

Existência:
Obra inacabada

Sempre a placa:
Aqui se trabalha



TRAPACEIRA

A vida
É useira e vezeira
Em propaganda
Enganosa:
Vende garapa
Entrega losna




ERRO

Pedi
Que fossem leves
Como 
As da libélula

A vida
Não entendeu:
Esculpiu-me
As asas
Em pedra



RUÍNA

Agora 
Que a dúvida
Arruinou-me
A velha catedral
Cá estou
Recolhendo cacos:
Ver se refaço 
Azulejos
Anjos
Santos

E as Tábuas da Lei




EXPLICAÇÃO

Não é
Que eu esteja 
Triste:
É só uma lágrima
Teimosa
Que insiste
Em cair
Fora do script



MOLDURA

Filetar
Os contornos
Da vida
Passar
Base líquida
Dourar :
Resolverá?




UMA FRIA

Triste
A minha sina:
Detetive amador
Desnorteado
E o cadáver
Boiando na piscina





TEMPO DE IR

Vez em quando
É tempo:
Desvestir andrajo
Monocrômico 
[Via de regra
Sépia] 
Envergar 
Traje multicolorido
Largar tudo
Partir pra longe
[Ok
Baby:
Deixo-lhe
Arco-íris
À guisa de ponte]



HOSPEDAGEM

Quero felicidade
Que seja mensalista
E não
Hóspede por um dia:
Que chegue
Trazendo mala
Sacola
Frasqueira
Que se instale
Da melhor maneira
Que abra
Sempre que quiser
A geladeira
Que ligue o rádio
De cima da cristaleira
Que ande de chinelo
E bermuda
Pela casa
Que se esqueça 
Que tem
Bom par de asas
Que pregue pregos
Na parede
Que dependure rede
Que nela se embale

Que não se vá
Sem dar-me aviso 
Prévio



UNS AZUIS

Uns azuis tão azuis:
Cobalto
Cerúleo
Ultramar
[Até se ouvia 
O marulho]

Rolinhas
Se não revoavam
Pousavam aos pares:
Um só arrulho

O colorido da vida
Cantava alegre barulho

Um dia
Espargiram-se
O cinza e o silêncio
Por sobre tudo

Teceram-se as teias
Que pendem
Do teto do mundo



SONHOS

Todos os pequenos 
Sonhos
Sonhos possíveis
Sentados
Displicentemente
A meu lado
No gasto gramado


Os irrealizáveis
Empoleirados
Com impáfia
No galho mais alto
Do pau'alho

[Conviria tentar 
Trocá-los?
Quem sabe
Forçando intimidade...]


* * * 



Zélia Guardiano nasceu em Ourinhos-SP. Professora, trabalhou por mais de trinta anos em Educação. Hoje dedica-se quase que  exclusivamente à produção literária, fazendo também algumas incursões pelas artes plásticas. Escreve conto, crônica e poesia. Tem trabalhos publicados em antologias , jornais e informativos culturais. Nos últimos anos vem participando do Livro da Tribo. É autora dos seguintes livros: POESIA COMBINA COM TUDO (2011), TREM-BALA (2012), AS HORAS  (2013), CADERNO DE DESAPONTAMENTOS (2014), NANQUIM (20015). Ainda este ano lançará AGOSTO ERA MÊS AZIAGO.

Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548