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dor de garganta
é também sintoma de medo
pois tenho medo
dos milagres acontecendo
dos olhos gordos sobre os milagres
tenho medo dos milagres testemunhados
mais ainda dos milagres correndo bocas escovadas
alvejadas azulejadas
dentes ajuizados
amídalas cheias de vida e de xarope do pólen mais vivo que abelha viva
pescoços esticadinhos
vou morrer de dor de garganta porque tenho medo demais
me sinto pervertida hoje
e como me dói a garganta
sinto nos pés o gosto da passagem do palavrão que não sai
não tem onde ir
tenho medo e não tenho bolas para
relocar o pescoço
a garganta
e admito:
preciso morrer dessa dor
:
quem vê
o mergulho suicida
da gaivota na rocha com busto e pescoço de mulher
quem vê a nudez no regaço vestido de vento
quem vê as linhas de arrasto triste triste nas nuvens rasgadas
quem vê o precipício entre o mergulho e as garrafas no estômago
da baleia que por ali jaze dois filhotes e meio
quem vê o abrigo que faz o horrendo vestido
da menina dos mariscos
quem vê abrigo qualquer no desenho do vestido
ora quem
vê o mergulho suicida da gaivota
a quem não vê não é permitida a mancha vermelha no busto no pescoço
ora lá quem não vê não tem pérolas para o toque do tempo
ora quem não leva a mão ao busto ao pescoço
ora ora
quem não usa o colar dessas horas inacabadas
ora quem não vê
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o pescoço segura
o queixo segura
o pente
as mãos juntam os cabelos
o queixo deixa o pescoço
quem larga o pente?
não importa
lá fora tem mais disso
pessoas delegam ao pescoço
pessoas delegam ao queixo
pessoas delegam ao mundo toda distância
entre a língua e o pirulito
meu pescoço segura um braço
meu queixo segura um braço
as mãos juntam os cacos
antes de furar os olhos de um anjo barroco demais
:
estico o pescoço para fora da janela
mesmo correndo o risco de ser
atropelada e ter os olhos furados por um pardal
estico o pescoço para dentro da geladeira
mesmo correndo o risco de ser
degolada pela porta e com uma cenoura entalada
no verbo
estico o pescoço para além da linha da calçada
mesmo correndo o risco estico o pescoço
para dentro do livro mesmo correndo
estico o pescoço para lamber um envelope
estico o pescoço para alcançar os olhos no fundo da bolsa
corro os riscos porque é preciso um quase
de morte para guarnecer o sono
estico o pescoço para além do pôr do sol
mesmo correndo o risco que mais gosto
de morrer esticada presa pela mandíbula
mordida àquela maçaneta em penny lane
:
sobe a cortina:
um pescoço invertido no fundo da colher
sopa pela metade
o casal que não se fala mas que tanto é salteado pelo
cenário:
o saleiro:
ENCONTREI MEUS DEDOS DEBAIXO DOS OLHOS DO MEU GAROTO
três janelas embaçadas: uma janela
o cão acelera a noite
faz existência mundana debaixo da mesa
uma duas três quatro cinco seis sete pernas
a montanha baça fura um lençol de nuvens
linhas dum fiat: ele que sabe o carro pela luz na cortina
dois sanatórios entre o casal uma cidade adiante o museu:
um só lustre cangaceiro cauterizando gráficos abertos
nos pescoços
um invertido no fundo:
ela que sabe a pele a casa pelas luzes de fora:
TOMBE O SALEIRO MOLHE O PÃO ENCONTRE-ME ONDE A AFRONTA
alguém à porta
alguém à porta para sempre à porta
colher sobre colher sobre louça suja de abóbora
dorme o cão
dorme a chave na gargantilha
dorme a planta a marcação a deixa dorme o cenário
dorme o garoto que trouxe uma santa para o jantar
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no coração do milagre
estará o bonde para levar os olhos
encharcados até outra dimensão
assim será com todos os milagres
todos com a óbvia
exceção dos milagres acontecidos ao pescoço
a esses milagres não é apontado o coração do milagre
nem o bonde
os olhos ficam e ficam secos
aconselha-se dar banho
uma colher de mel com espinhos
deitar orelhas sobre o assunto sem tocar pianos sobre a dor
e trocar os curativos de 40 em 40 pulsares
no coração da desgraça
um colar indiano pode fazer tudo isso e muito mais
que minhas pegadas sigam o rumo da descrença
menino jesus
* * *
Carla Diacov (são bernardo do campo, 1975)
formada em teatro, estreia em livro com AMANHÃ ALGUÉM MORRE NO SAMBA (Douda Correria – Portugal, 2015). em 2016, também pela Douda Correria, lançará NINGUÉM VAI PODER DIZER QUE EU NÃO DISSE. ainda em 2016, pelas Edições Macondo, lança A METÁFORA MAIS GENTIL DO MUNDO GENTIL.