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4 poemas de Assionara Souza

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Ilustração: Jerry Uelsmann



Tarot

Vou confessar, querida
Tenho isso de gostar dos loucos
Observo de longe o jeito que eles comem com os olhos
Com você foi assim
Esse esmalte vermelho sempre em dia
Esse passado colado no álbum com cantoneiras e papel vegetal
Quero a receita completa
Desde o suspense antes do desfecho da trama
O disparo, teu olho assustado pra câmera
Por trás da palavra pêssego
corre um rio espesso
Mordo a palavra pêssego
E as comportas desabam — uma cidade inteira vem abaixo
Corremos, corremos para bem longe do set de filmagens
Vida real é um cão dormindo no silêncio da tarde de um domingo



Um breve instante

Tomo um chá enquanto escrevo
O resto de tudo o mais
Dilui-se na ilusão dos dias
Ontem, por exemplo, choveu
E fez frio as horas todas em que não estivemos juntas
Pensei em ti enquanto olhava a mendiga de minha rua
Encolher-se num canto onde o vento machuca menos
Pensei no quanto amo tuas mãos de amarrar nuvens
Quando o moço viciado em crack me apresentou o papel da receita
E pediu que lhe inteirasse o dinheiro para a compra do remédio
Chorei muito e odiei o mundo
Ao ler a notícia da menina encontrada morta
Com marcas de estupro e o coração arrancado
Lembrei do quanto amo teu abraço mar em torno da ilha de minha tristeza
E meu tanto querer voou ao teu encontro
Minha alma valsou feito o violinista de Chagall
à volta de tua figura
Será que você sentiu
Esse meu beijo-pensamento, ontem às seis da tarde?
Ah, deixa-me dizer que isso não é romantismo
Não tenho ilusões de casamentos
Nem grandes festas
Em que todos os presentes esqueçam
Por algumas horas
Que chove e faz frio
Que o vento violenta a mendiga de minha rua
Que o garoto sonha com a química que o destrói
Que pelos caminhos de crianças de dez anos
Rondam homens maus que lhe arrancarão a vida, a alma e o coração
Não mais escrevo poemas, meu bem
Sentir e dizer o que sinto
É tudo o que sei e faço
Com o desejo único de que em algum momento
Meus olhos barcos avistem
Ainda que por um breve instante
Esses teus olhos horizontes
Antes que se feche a noite, o sono e o sonho



Ilustração: Jerry Uelsmann


A mulher de Lot

Um passo atrás
Enquanto a cidade desaba
Todos correndo
Um tumulto dos diabos
O filho, a filha, o marido
A vizinha da frente — com quem o infeliz tem fornicado
Há mais de cinco anos embaixo de seu nariz
Como se ela não soubesse
Como se ela não tivesse visto de tudo nessa vida
Ele perguntando se a camisa vermelha
— Aquela com um só bolso no lado direito?
— Sim. Essa mesma.
Se a camisa vermelha não estava limpa e bem passada
E o filho indo no mesmo caminho
Tratando-a feito lixo
— A mãe não sabe pronunciar a palavra "estultícia". Tenta, mãe!
Estúpidos todos
Até a filha, que ela tanto ensinou
Agora andava com um centurião
Um centurião!
Maior desgosto para uma mãe
E depois dessa correria toda
Quando arrumassem pouso
Adivinhem quem prepararia o jantar!
Não teve a menor dúvida
Mirou a cidade em chamas
Uma sensação incrível
Deixar de ser uma mulher de pedra
Seu corpo inteiro puro sal rebrilhando ao sol



Narcisyou

Então é suficiente olhar o poema na página e pensar:
Que poema estrondoso
Que poema estúpido de louco
De onde vem essa coisa toda que se chama poema?
Ah, talvez daquela rua
Um garoto atravessando
Ele tem um lenço azul no bolso
E fica parecendo o rabo de um gato
Os cabelos esvoaçam
Ele fez isso de propósito
Não! Espera, não é daí que vem
Talvez seja mesmo desse pouco espaço para o coração
De repente ele começa a explodir demais
E ninguém consegue dormir direito
Ou por isso mesmo, dorme-se demais
A cidade sonolenta
Os três correndo feito loucos
E quando ela cansa, põe as mãos nos joelhos e sorri
Jules e Jim também é o seu filme preferido?
É o meu!
Que coincidência
Que coicidência eu ter olhado por um tempo longo
E ter pensado:
Estranho, quanto mais eu olho, mais gosto
Não era só um poema numa página?
Aliás, naquela manhã — já faz tempo
Seu rosto de criança refletido no lago
Todos prontos para partir e você ali
Nesse exato momento: o poema




Assionara Souza. Escritora, nascida em Caicó/RN e radicada em Curitiba/PR. Formada em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná, é pesquisadora da obra de Osman Lins (1924-1978). Publicou os volumes de contos Cecília não é um cachimbo (2005), Amanhã. Com sorvete! (2010), Os hábitos e os monges (2011) e Na rua: a caminho do circo (2014). Sua obra tem sido publicada no México pela editora Calygramma. Participa do coletivo Escritoras Suicidas. Estreou na dramaturgia com a assinatura da peça Das Mulheres de Antes (2016), com a Inominável Companhia de Teatro.

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