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ADAGIO QUASI LARGHISSIMO - Um conto delicioso de Aloísio Svaiter

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Casa cheia. Daqui enxergo todo mundo. Os que vêm sempre, ar de rotina. Os que não vêm nunca, assustados, buscam o seu lugar. E também os críticos dos jornais. Esses eu conheço, um por um. Todos com ares de autoridade mediúnica. Descem o pau quando a orquestra se perde e quando não se perde também. Acho que eles têm o texto pronto antes de vir. Ninguém aqui em cima liga pra eles. Só o Maestro. Ele fica doente. Analisa as críticas publicadas. Quer entender o porquê. Depois, tenta nos corrigir. Acho que tem medo de perder o emprego.

O Conselho da Fundação é fogo. Os caras não aparecem nunca. Mas leem os jornais.

O babaca do spalla entrou agora. Batem palmas para ele. Por que? Não ouviram nada ainda. E ele agradece. Uma mesura repleta de humildades. Se soubessem da empáfia dele. E como puxa o saco do Maestro para se manter escolhido. Agora tira do violino uma nota esticada e todos fingem afinar os instrumentos com ela.

Eu, aqui, no fundo, estou cercado por quatro tambores. Sou também baterista de um conjunto de jazz. Aqui, tenho um título pomposo. Percussionista. Toco tímpanos. Dou ênfase a trechos graves. Acentuo o caráter da música em alguns momentos. Por vezes, pouquíssimos momentos. Em algumas peças, fico imóvel, quase todo o tempo. Só quando o Maestro me aponta o dedo, eu me levanto, faço ressoar os tambores. O som se propaga na sala. Depois, me sento novamente. Por alguns instantes, sou mais do que os primeiros violinos, os segundos violinos, os violoncelos, as trompas, os fagotes. Eu vejo, no público, a emoção que provoco. Ele fica atento. Arregala olhos. Desperta do embalo da música. Mas não me veem. Estou lá atrás. Quem está na frente é a Marta. Ela fica na segunda fila de violinistas. Ao lado do spalla. À esquerda do Maestro. Olhou para mim, agora há pouco, de relance. Depois, ajeitou a pauta na estante, e, apoiando o violino no colo, distraiu-se com a plateia. Dizem que será o próximo spalla. Correu esse boato. Ela é casada com o violoncelista da última estante, à direita do Maestro. Foi sua aluna. Não me importo com ele. Faz tempo que ela não vem ao meu apartamento. Mas ele não é a causa. Certamente não é. Cometi algum erro. Ou foi desencanto mesmo. Outro dia, depois de insistir para eu largar a percussão e tentar a flauta, ela desabafou. Sua vida artística, disse, tem a rotina de um ascensorista. Só que não sobe. Nunca.

Agora o Maestro entrou. Passos rápidos. Decididos. Aplausos da plateia. Os músicos se empertigam. Ele sobe no pódio e levanta os braços. Eu fico de braços cruzados. Eu sei que ele não gosta. Mas só vou tocar daqui a nove minutos. Uma eternidade. Tenho que ficar com as mãos sobre as pernas, como um faraó egípcio? Marta me olha de esguelha.

O Maestro levanta as mãos. Os violinos começam agora. Depois os sopros. Allegro, é o ritmo. Na terceira fila, está o critico do Diário. Ar de enfado. Aqui na frente, primeira fila, o da Folha da Tarde. Sorriso escapando dos lábios. Os outros estão perdidos por aí. Ocultos, juízes implacáveis. É preciso ter coragem para se exibir em um palco. Ou desprezo por quem não está ali.

Outro movimento. Adágio. A orquestra avança, lentamente. O Maestro embevecido. Os violinos choram a melodia. Eu descruzo os braços. Em três minutos, com a mão esquerda, o Maestro vai sinalizar. São cinco batidas surdas. Ritmadas com a mão dele. A esquerda.

E eu, aqui, pensando. Marta não vem ao meu apartamento faz três semanas. Desculpas bobas. Audácia, imaginar que me engana. Seu violoncelista decrépito não tem ciúmes, nem a prende em casa. Eu não quero ser flautista. Eu não vou ser flautista, ouviu? Não sou ambicioso como você, Marta. Você fará qualquer coisa para ser spalla. Só para ganhar umas palminhas antes da entrada do Maestro. Aliás, outro vaidoso, com um ego maior do que uma catedral, cheio de pretensões do sublime perdidas em um pântano de vulgaridades.

É possível suportar ser medíocre e conviver passivamente com essa ideia. É possível ver, semana após semana, solistas serem aplaudidos, indo e voltando das coxias, três, quatro , cinco vezes, para receber as palmas e os pedidos
de bis e ficar como eu, imóvel diante desses tambores, sabendo que jamais o farão por mim. O que é impossível, Marta, é suportar a razão do seu abandono, que eu vejo agora, clara, escancarada, para quem quiser ver, neste adágio, em que seu violino  toca sozinho porque seus olhos só fitam os do Maestro. E ele só rege para você.

Agora, ele levanta a mão esquerda. É hora. Ainda não se despregou dos seus olhos, Marta. Faz sinal para a primeira batida surda, sem nem olhar para mim.

Eu cruzo os braços. A batida surda não vem. Ele percebe e mira incrédulo. Sinaliza com força a segunda batida. Eu, de braços cruzados. Ele me olha assustado. Marta, pálida, suplica. A orquestra olha para trás. Os críticos levantam a cabeça. O Maestro perde a cadência, parece que quer acabar rápido, cordas e sopros não se entendem.

A orquestra desanda.

Então, lentamente, bem devagar, em um adágio quasi larghissimo, apanho as duas baquetas, olho fixo para Marta e massacro a melodia com um rufar interminável.

Dou então as cinco malditas batidas surdas, largo as baquetas no chão e vou embora.

Sou baterista de um conjunto de jazz.




Aloísio Svaiter, graduado pela Escola Nacional de Engenharia do Rio de Janeiro, desde sempre é leitor voraz. Frequentou recentemente o Ateliê de Criação Literária, com a supervisão de Nelson de Oliveira.

Imagem gentilmente escolhida por Maria Balé. Fotografia:UEM/Divulgação
Orquestra da Universidade Estadual de Maringá

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