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A origem do expressionismo imaginário - Fernando Paiva

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Ilustração: David Park


Na taxidermia do mundo das artes, Farbento Silva era da família dos formalistas. Isto posto, tudo o que nomeiam como pós-moderno lhe parecia uma espécie de outro reino que não o das artes. Chamem de entretenimento, de filosofia, de ciência, do que quiserem, mas não chamem de arte algo que não se pode reconhecer como tal (silva, Farbento. “O mal da arte contemporânea”, artigo publicado em O Diário). Arte é cor e forma, costumava dizer na aula inaugural a cada novo semestre como professor na faculdade de Belas-Artes. Qualquer outra definição é um exercício inútil de retórica, complementava.

Na sua opinião, a pintura atingiu o ápice no modernismo, com a fusão entre cor e forma de Malevich, as dimensões cubistas de Picasso, a ordem e a harmonia nas composições de Mondrian e o vigor das pinceladas de Munch. Sua preferência pessoal era por este último e pelo expressionismo em geral, desde aquele presente de forma sutil em pintores como El Greco e Goya até o mais explícito, como no movimento alemão do século 20. Tinha também um apreço particular pelo figurativismo da baía de São Francisco, que foi tema da sua tese de pós-doutorado. Estudou a fundo nomes como David Park e Joan Brown. Publicou o livro O expressionismo figurativista californiano no pós-guerra, que virou referência sobre o tema. Naquelas páginas, incluiu a sua definição apaixonada sobre essa maneira de pintar:

O expressionismo figurativista leva para as telas o que sente o artista. É o mundo visto através da lente do seu coração, com todas as distorções decorrentes disso. Assim, forma, conteúdo e sentimento são a mesma coisa. É como se o espectador fosse transportado para dentro da mente do artista, tendo acesso não apenas ao que ele vê, mas como vê. (silva, Farbento. O expressionismo figurativista californiano no pós-guerra.)

Por outro lado, desqualificava quase toda a produção contemporânea, por entender que o conteúdo de suas obras não está na composição plástica, mas fora dela. São experimentos intelectuais, não plásticos. No pós-modernismo, a arte está na explicação sobre a obra, não na obra em si. Os artistas estão mais preocupados em justificar sua bizarrices do que se expressar plasticamente (silva, Farbento. “A morte da arte”, artigo publicado em O Diário).

Em artigos semanais, falou mal de inúmeros novos talentos da arte do seu tempo. Muitos deles se sentiram ofendidos e acusaram Farbento Silva de ter um prazer sádico em esculhambar novos artistas. A verdade é que seus textos, embora duros, eram coerentes com a sua definição formalista de arte e focavam exclusivamente na análise plástica das obras, ou seja, na sua relação entre cor e forma. Não poupou nem mesmo ícones como Andy Warhol. Os quadros de A. Warhol parecem reproduções de páginas de revistas de celebridades pintadas por um pintor de paredes (silva, Farbento. “Pop arte: um semanário de fofocas transposto para as telas”, artigo publicado em O Diário). Sobre a aceitação de performances dentro de museus, escreveu: Chegamos ao ponto em que o museu de arte moderna virou um circo... de horror! Daqui a pouco vai virar um bordel (silva, Farbento. “Em respeito à verdadeira arte circense”, artigo publicado em O Diário). Em relação à body art, sugeriu aos artistas uma visita ao psiquiatra. O que chamam de body art são sintomas de sérios distúrbios mentais, que, infelizmente, alguns críticos irresponsáveis abraçam como expressão artística. Em vez disso, deveriam recomendar ajuda médica a esses perturbados jovens (silva, Farbento. “Uma doença chamada body art”, artigo publicado em O Diário).

Nada o irritava mais que a chamada arte conceitual, que pregava a desmaterialização da obra, o que Farberto Silva definiu como um embuste sem precedentes, o cúmulo do pós-modernismo, a morte da arte. Estão se aproximando perigosamente do ponto em que vão chamar o vazio de arte. Quando tudo é arte, nada é arte (silva, Farbento. “A morte da arte”, artigo publicado em O Diário).

Sua verborragia o isolou gradativamente do meio artístico, conforme os conceitos do pós-modernismo se fortaleceram entre artistas, teóricos, críticos, curadores, museólogos e colecionadores. Virou uma figura folclórica. Receber suas críticas ferrenhas no jornal era quase um certificado de qualidade para os novos artistas, algo como um selo de aprovação ao contrário. Quando seu prestígio não era mais tão grande quanto aquele dos que reclamavam de suas palavras, foi demitido do jornal O Diário.

Sobrou-lhe a cadeira de professor de teoria da arte, cujas aulas se tornaram o último palco livre para a exposição de suas ideias, embora cada vez com menos reverberação. Ano após ano, um número menor de estudantes o procurava como orientador. Sua agressividade não tinha mais a mesma audiência, nem mesmo como piada. Por determinação da diretoria do departamento de história da arte, Farbento Silva foi remanejado e passou a lecionar uma matéria eletiva sobre o expressionismo figurativista californiano no pós-guerra, que atraía meia dúzia de gatos pingados por semestre.

Temeu estar fadado ao ostracismo para o resto dos seus dias. De crítico mordaz, temido por dez em cada dez novos artistas e respeitado entre seus pares, passou a ser ignorado. Foi então que teve uma ideia que mudaria sua biografia, se um dia alguém se prestasse a escrevê-la. Já que sua defesa do formalismo não encontrava mais eco, decidiu fazer o contrário: inventar, ele mesmo, uma nova tendência de arte pós-moderna. Era a sua resposta sarcástica à derrota da sua corrente teórica. Uma última e bem-humorada cartada. Nasceu assim o manifesto da arte-pensamento, a evolução natural da arte conceitual, diria.

Abram as suas mentes para a arte-pensamento, o primeiro movimento pós-pós-modernista. Tudo o que veio antes é passado e velho. Arte-pensamento não se expressa com tinta. Nem com bronze. Nem com palavras. Nem com dança. Nem com forma, nem com cor, nem com nada. Arte-pensamento não se expressa porque é imaterial em sua essência. É a ideia de uma obra antes da sua execução. É a verdadeira arte conceitual, já que a existente hoje insiste em se expressar por palavras. É o pensamento enquanto suporte. Existe apenas na mente do artista. É a arte em forma de ideia, literalmente. Ou arte em estado bruto. A arte mais pura, mais perfeita, é aquela em pensamento. Por mais talentoso e perfeccionista que seja um artista, na execução de uma obra sempre se perde algo em relação à ideia original. Uma obra de arte-pensamento nunca poderá ser conhecida pelo mundo em seu estado natural, à exceção do artista que a tem na mente – ou que a teve um dia, se já não a tiver esquecido. Uma obra de arte-pensamento é a intenção do fazer, é a inspiração, é a vontade inicial, antes da realização propriamente dita. É a pré-arte. Se foi pensado, logo existe: este é o lema da arte-pensamento.

Conseguiu que o manifesto da arte-pensamento fosse publicado no mesmo suplemento cultural que lhe conferira espaço no passado. Era para ser uma piada, mas foi levado a sério. Muita gente acreditou que Farbento Silva havia mudado de lado, deixando o formalismo para trás e se transformando em um relativista, um pós-modernista, ou um pós-pós-modernista, como ele mesmo definiu. O manifesto gerou intensa discussão na comunidade artística. Afinal, pensamento pode ou não ser suporte para arte? Por dentro, Farbento Silva ria: toda aquela reflexão não podia ser séria.

Alguns meses mais tarde, ficou sabendo que uma galeria especializada em arte pós-moderna estava organizando a primeira exposição coletiva de arte-pensamento do mundo. Ele próprio, Farbento Silva, foi convidado para redigir o texto explicativo. Viu-se confrontado com um dilema: manter a postura sarcástica e escrever um texto elogioso sobre arte-pensamento ou escrever uma crítica destruidora, ao melhor estilo do velho Farbento Silva, na qual revelaria toda a farsa? O melhor que poderia ter feito seria simplesmente ignorar o convite, mas nem cogitou essa hipótese, sedento que estava pela atenção que não tinha mais. Optou por escrever a verdade. O texto foi exposto com destaque em uma enorme parede na entrada da galeria:


Ilustração: Yves Klein

Arte-pensamento na
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o existe. Seu manifesto original, por mim assinado, se trata de uma irônica crítica ao relativismo pós-moderno, lamento informar. Logo, tudo o que veem nesta exposição, seja lá de que forma for apresentado, não é arte, nem sequer um arremedo disso. É uma funesta farsa que envolve galeristas, críticos, teóricos da arte, artistas, colecionadores, mecenas, jornalistas e também o público, todos coniventes com um processo de idiotização das artes plásticas iniciado há algumas décadas pelo chamado pós- modernismo e seu indefensável relativismo. Esta exposição está calcada em uma teoria impossível, a de que o pensamento pode servir como suporte da arte. E pior: que pode ser comercializado desta maneira. É uma afronta à inteligência de qualquer pessoa detentora de suas faculdades mentais. Espero, sinceramente, que este texto constranja a todos que entrarem nesta sala.

Não constrangeu. Pelo contrário, gerou ainda mais entusiasmo em todos os visitantes. Ao lado, na mesma parede, havia outro texto, este do curador e organizador da exposição, um antigo desafeto de Farbento Silva, no qual era feita uma apaixonada defesa do relativismo, ou seja: tudo pode ser arte, inclusive um falso movimento artístico como a arte-pensamento. 

Farbento Silva não se furtou de comparecer ao vernissage. Queria ver aquela palhaçada com seus próprios olhos. Mal sabia que a sua presença era parte do espetáculo. As tais obras expostas eram certificados em papel, todos numerados e assinados pelos respectivos autores, assim como pelo galerista, como avalista. Eram documentos que representariam, cada um deles, uma diferente obra de arte-pensamento. Além da exibição dos certificados, foi feita uma performance, que consistiu nos artistas perfilados de pé, com os olhos fechados, por dez minutos, “pensando” as obras representadas por aqueles pedaços de papel. Enquanto isso, o galerista leu em voz alta, repetidas vezes, o manifesto original da arte-pensamento, de Farbento Silva, que assistia à cena incrédulo. Deu-se conta de que já havia escrito críticas sobre todos aqueles artistas no passado, sempre negativas. Subitamente, lembrou-se de cada um daqueles nomes e das obras terríveis que produziram no início de suas carreiras, tão ruins ou ridículas quanto os certificados de arte-pensamento. Seria aquele espetáculo um tardio ato de desagravo? Uma vingança contra seus artigos? Se fosse uma brincadeira, por que então havia gente comprando os certificados? Sim, todos foram vendidos, por 50 mil dólares cada, naquela mesma noite da inauguração. Seu texto na parede não serviu de alerta. Talvez, ao reverso, tenha referendado aquela porcaria. Pensando bem, nada poderia irritá-lo mais que descobrir que colecionadores levariam a sério a arte-pensamento e pagariam por certificados, enchendo de dinheiro os bolsos de um galerista pilantra com a cumplicidade de alguns dos piores artistas das últimas décadas. Quando entendeu que fora usado contra si próprio, virou as costas e se retirou da galeria enfurecido, não sem antes bradar impropérios contra os presentes.

As reações de Farbento Silva foram registradas por um fotógrafo. Suas expressões de espanto, incredulidade e indignação renderam um ensaio fotográfico que virou uma nova exposição, chamada “O criador repele a criatura”. Outro desdobramento do fatídico vernissage foi uma obra de videoarte batizada de Obras pensadas, que nada mais era que o registro em vídeo da performance dos “artistas pensadores”, como foram chamados pela mídia os participantes da primeira exposição coletiva de arte-pensamento. O vídeo ganhou espaço na Bienal de Veneza.

A exposição de arte-pensamento e as obras que dela se originaram foram descritas por um jornalista como o primeiro ato de bullying como arte. As pessoas que compraram os certificados não eram assim tão idiotas quanto Farbento Silva imaginou.

Não haviam adquirido comprovantes de arte-pensamento, mas, no fundo, recordações daquele evento em si. Lendo as resenhas publicadas sobre o vernissage, Farbento Silva entendeu que fora alvo de uma ação vexatória, um sofisticado ato de vingança que, por si só, para aquela gente, era considerado também uma obra de arte e que simbolizou a pá de cal sobre o formalismo e o triunfo do relativismo. Ninguém caiu na sua história de arte-pensamento – embora todos entendessem como relevante a discussão sobre a necessidade ou não de um suporte material para a arte. Enfim, Farbento Silva não enganou ninguém. Em vez disso, foi ele o maior enganado nesse episódio, que ainda suscitou um intenso e profundo debate dentro da corrente relativista, justamente aquela que tanto criticara.

Depois disso, Farbento Silva decidiu se aposentar da academia e nunca mais escrever sobre arte. Mudou-se para a sua casa de campo, suspendeu a assinatura dos jornais e passou os últimos anos da sua vida fazendo palavras-cruzadas, cuidando de uma horta e admirando a natureza, ao lado de sua esposa. O único vestígio do seu passado eram alguns pôsteres com reproduções de Munch pregados nas paredes. Morreu amargurado e desiludido com a arte, certo de que a genialidade encontrada nos ícones do modernismo não se repetiria.

Trinta anos mais tarde, cientistas descobriram um método de decodificar, armazenar e transmitir pensamentos. Transmissor e receptor vestem capacetes especiais, batizados de exocerebelos. As primeiras utilizações serviram a fins militares e de inteligência. Depois a tecnologia foi adotada nas mais diversas aplicações, como no setor da educação, com alunos acompanhando o raciocínio dos professores de dentro de suas mentes. Psicólogos recomendaram a adoção para a análise de sonhos. Na indústria do entretenimento, surgiram os imaginary shows, considerados a evolução dos reality shows: pessoas concordavam em vestir exocerebelos e transmitir todos os seus pensamentos em tempo real, via internet, para quem pagasse por isso. Máquinas passaram a usar a leitura do pensamento para atender a comandos, substituindo botões em geral e decretando o fim de controles remotos e teclados. Surgiram as editoras de livros-pensamento, que proporcionam uma nova experiência literária, no lugar dos antigos livros escritos. Museus instalaram cápsulas da fruição, nas quais os visitantes se deitam e vestem exocerebelos para visualizar em suas mentes obras de Expressionismo Imaginário, o primeiro movimento artístico a usar o pensamento como suporte. Algumas das mais belas obras expressionistas foram criadas com o pensamento, em uma encantadora fusão de conteúdo, forma e sentimento. À época, ninguém relacionou o expressionismo imaginário ao manifesto da arte-pensamento e seu falecido autor, Farbento Silva.

Dois séculos mais tarde, quando a humanidade já havia se mudado para além-Terra, coube a Madalena Silva reclamar o crédito de seu tatataravô. Ela era uma das mais renomadas arqueólogas interplanetárias, especializada na primeira era digital terrestre. Em uma viagem de campo ao velho planeta azul, então praticamente inabitável, resgatou discos rígidos da antiga universidade e do jornal onde Farbento Silva trabalhara. Conseguiu recuperar o conteúdo por meio de avançadas técnicas de escavação de dados, com leitores atômicos. O resultado de sua pesquisa foi publicado em um livro-pensamento pela editora da Universidade Autônoma da Lua.

O pensamento como suporte foi imaginado, pela primeira vez, pelo teórico de arte Farbento Silva, autor do manifesto da arte-pensamento, publicado no ano terrestre de 1997 pelo jornal impresso O Diário. Embora se tratasse de uma provocação contra o pós-modernismo, movimento que dominava o cenário artístico da época, o manifesto deu a partida para a reflexão sobre o pensamento como suporte, iniciando profundas reflexões de ordem artístico-filosóficas entre teóricos daquele tempo, o que serviu de semente para a aceitação futura do que viria a ser o expressionismo imaginário dos dias de hoje. Silva, aliás, era ele próprio um especialista em expressionismo modernista. Se vivo fosse, esse visionário decerto teria se encantado com a reconciliação entre conteúdo e forma proporcionada por artistas e seus exocerebelos. (silva, Madalena. Trecho de artigo publicado na revista-pensamento Arqueologia Terrestre, no ano espacial 13.)



Conto de "Depois que o tempo passar, Madalena" (7letras, 2016).



Fernando Paiva nasceu em 1977 no Rio de Janeiro. É jornalista especializado na cobertura do mercado de tecnologia móvel. Desde 2011 edita o site Mobile Time. É autor dos livros Carta para Ana Camerinda (Ibis Libris, 2004), Salvem os monstros (7Letras, 2010), Somente a verdade (7Letras, 2013), Pedro vai à Terra (Megamíni, 2015) e Depois que o tempo passar, Madalena (7Letras, 2016). É também compositor e guitarrista das bandas A Última Peça e Luisa Mandou um Beijo.

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