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Alforrias II - Rita Santana

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Ilustração: Gustavo Martins

Embate de víboras

O meu corpo toma o teu,
Trama carnes novas dentro do teu,
E te alinhava na minha pele.
Fere velhas feridas tuas
E não mais regressa,
Deixando ao relento o teu ciúme.

O teu corpo vinha de sangue
O esmalte dos meus dentes.
Morde a maçã e diz malsã
Minha sandice de anemias.

Tu e Eu:
Adultério, torpezas e vilanias.


Herdade

Adio os búzios ante a vastidão dos tempos
A fim de ocultar o que em mim
Será o nascer inadiável do sol,
Ou a cicatrização paulatina dos ferimentos.

És, em mim, a Herdade.
O feudo imensurável dos meus quilombos.
O abandono mais desatinado de mim mesma
E dos projetos de Ser que armazenei nos ponteiros.

Enquanto aguardava o despotismo
Do teu aferro à inércia,
E dizia dos teus erros apenas Pacatez
E dissonância,
Fincava no Desejo o meu deus de obstinações!

Adiava a Exaustão!
Afugentava abstinências!



Inclemências

A pedra seca abriga resíduos
Fósseis da saudade extinta.
O tempo roga inclemências Ermas
Nas fibras do meu desespero.
E pinta dor de espátulas
No desconsolo das vésperas.

Diante destes navios,
Minha janela se cansa.
E eu, fruta peca,
Flor sem pétalas,
Coração de máculas,
Mergulho muda
Num mundo-mar de vastidões.

Cansei de ser triste
Cansei desta matéria
Que alimenta e devora
A Poeta,
A Porta da minha casa,
A Puta da avenida Sete.

Aos demônios o cacete
Dos homens demasiadamente
Homens!

Infensos à demência réptil
Da minha esperança Yerma.



Mortes Cotidianas

Chove na promessa remissa do feriado
E a migração não cessa.
Entristeci há dias
E o espelho, somente ele,
Revelou o embranquecer dos pelos,
O cansaço da voz,
E a desidratação da esperança.

Chove nos confins da minha alegria.
Virei moça triste sem vontade de sorrir.
Não tenho nada!
E nada resta do ser, senão, securas.
Artroses na atriz, reumatismos no feminino
E uma alergia de afetos.

Há anos não gozo, por puro desgosto!
Há anos não canto, por desencanto!
Há anos não vivo, só tenho banzo!
Por pura preguiça
De subir tantas ladeiras,
E descer tanto Morro,
Morro, morro, morro, morro...



Muda Nudez

Nem saberás da minha oferta de nudez muda
Nem que andei vestida de teus dedos no espelho
Nem que foi tua minha vulva absoluta
E o meu olhar mais caro de desejos.

Ando querendo horas com o teu silêncio
Sem que a cidade saiba do meu mutismo
Nem das páginas do meu calendário
Doadas ao tempo da tua confissão.

Sofro a secura dos dias sem as pedras
Do teu quintal de inventários,
E as Fedras que nascem em meus olhos
Jazem mortes tão tristes, tão tristes.

Vivem tão tristes nos subterrâneos
De um amor que mais se arrefece,
Quanto mais se ama em arrecifes.

Tudo por ti!
Por ti, tirânico espadachim dos meus tormentos.

Amor que nem Veneno mata.



Selva

Banho teu corpo de Deus
Nos cuidados dos meus caldos quentes.
Banho-te de Nardo, óleo das Olivas,
Aroma do Lótus.
Acendo-te incensos de mirra,
Cozo alecrim nas carnes para teu regaço.

Adianto os anos para perecer
Mais rápido de velhice
E encontrar teus dias
No crepusculário dos desejos.

Adejar de banjos e tulipas
Sobre nossa cama de incêndios.
Vivo à espera de dezembros que não chegam.
À espera de janeiros,
À espera de abris cheios de março,
À espera de maios nunca tidos
À espera de uns raios da Sicília.

E volto a rendar tua pele gasta
Com meus dedos de menina, Selva.



 

Rita Santana é professora, atriz e escritora. Em 2004 publica Tramela (contos) - prêmio Braskem de Cultura e Arte para autores inéditos. Em 2006 publica Tratado das Veias  (poemas) através do Selo Letras da Bahia, e em 2012 lança Alforrias (poemas). Como atriz, tem experiências em teatro, cinema e televisão.

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