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Assombros - Eduardo Sabino

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Ilustração: Amanda/deviantART


            O medo era o combustível de tudo. O medo rompia a lógica serena e entediante da vida. Os meninos pegavam a lanterna na festa e corriam para o cômodo escuro. Nem sempre a deixavam entrar. Por ser dois anos mais nova que eles. Por ser a única menina de uma geração de homens. Ana esmurrava a porta e implorava um lugar no breu. Pela insistência, conseguia.
            Os meninos sentavam-se em círculo e revezavam a lanterna. Quem a detinha, contava uma história de terror. Histórias passadas de geração em geração em Nova Lima. Damas de branco, suicidas do córrego, mulas sem cabeça, óvnis e alienígenas cabeçudos vistos no topo do bairro.
            Mesmo sabendo que talvez não conseguisse dormir mais tarde, Ana gostava de ouvir os casos. Gostava da sensação do arrepio na nuca, do corpo em alerta, de saber que o mundo também era feito de coisas estranhas e misteriosas.
***
            Ana e João dividiam o interesse por extraterrestres. Saíam de fininho no meio das festas e iam para a sala de visitas. Assistiam a uma série de alienígenas na Rede Bandeirantes. Na abertura, uma criança de cabelos lisos, filmada de costas, aparentemente normal, de repente virava o rosto e mostrava suas feições de extraterrestre: testa grande, pele esverdeada, olhos negros imensos, boca fina e miúda, nariz rente à pele e deformado. Nenhum episódio era tão memorável quanto a virada de rosto do alien.
***
            Ana gostava de ficar na varanda da avó em noites de céu estrelado. Observava os aviões levantando voo atrás da serra e procurava as três marias e o cruzeiro do sul, as constelações mais fáceis de achar. Seu maior desejo era ver um objeto suspeito, uma luz de brilho e movimentação irregulares, comprovar a existência dos discos voadores. No seu nono aniversário, Ana notou um objeto estranho balançando acima do muro. Mostrou aos meninos e todos correram pra dentro de casa. No quarto do segundo andar, ajoelharam-se na cama e colaram os rostos na janela. Ana olhou pela fresta da persiana e deu a notícia ruim: uma tira de plástico grudada na fiação elétrica.
***
            A avó de Ana ouviu o chamado em um domingo chuvoso. Alguém de voz aguda dizendo ô de casa e batendo palmas.
            Olhou no buraco da fechadura e viu a imagem de uma moça belíssima. Vestido branco, maquiagem forte, um sorriso meigo. Como estava descabelada, e não podia se apresentar assim à visitante, a avó de Ana correu à penteadeira e ajeitou os cabelos.
            Quando abriu a porta, não havia ninguém. Duas vizinhas jogando conversa fora na janela de suas casas. A avó de Ana perguntou-as sobre a moça de vestido. Estavam ali há mais ou menos quarenta minutos e não tinham visto moça nenhuma. 
            As histórias correram. Vieram, pela boca dos antigos do bairro, os fundamentos históricos da aparição. No século anterior, uma noiva teria tentado atravessar a ponte do Bananal a cavalo.  Fugia de um casamento arranjado para um médico com o dobro de sua idade. Talvez conseguisse fugir, sabe-se lá pra onde, se o animal não tivesse prendido uma ferradura num vão entre as madeiras da ponte. A noiva caiu do cavalo e quebrou o pescoço.
            Desde a visão da avó de Ana, as pessoas evitavam andar sozinhas pela banqueta e temiam encontrar a noiva. Quanto a Ana, a história havia a comovido de uma maneira diferente. Ela vigiava a rua da janela, escondida, e recebia as visitas no portão. Uma parte de si queria ver o espírito da noiva. Por vezes, imaginou o encontro. Diria à moça que sentia muito pelo acidente e que acenderia uma vela pedindo a deus que a levasse para o céu. Mas eram sonhos fabulados ao longo do dia. De noite, Ana temia criaturas sobrenaturais de toda ordem, inclusive a noiva de branco, e entrava embaixo da coberta no menor sinal de ruídos não identificados.
***
            João e Ana batiam a idade. Também o interesse por games e histórias, embora João apelasse quando perdia no Super Nintendo e dormisse de luz acesa quando a turma extrapolava na sessão terror. Extrapolar na sessão terror significava chegar aos temas proibidos no quarto escuro, os demônios: histórias que culminavam sempre em luz acesa e debandada e que vinham na mente, num replay constante, na hora de dormir.
            Certa feita, João contou a Ana a história da luz verde. Estavam na varanda, sozinhos. A luz verde era uma luz que se deslocava à noite pelo bairro, como se fosse a mira de uma arma, e que teria perseguido alguns fiéis em vigília na cruz da Boa Vista. Reza a lenda que, se for pego pela luz, o indivíduo será teletransportado ou abduzido.
            Ana se lembra de ter achado a história boba. Mais boba do que a história dos homenzinhos que teriam perseguido seu tio Antônio na represa. Seria até engraçada não fosse a luz verde projetada no rosto de João assim que ele concluiu o relato.
            Ana e João correram gritando para dentro do quarto e se esconderam debaixo da cama. Nenhum adulto em casa, todos na casa de um vizinho onde acontecia um comício de um vereador.  Tremendo debaixo da cama, os meninos viram a luz se movimentando nas paredes lentamente. Ana pressionou a mão de João, fechou os olhos, disparou três pais-nossos e duas ave-marias, e tapou a boca do primo quando ele começou a chorar. Nenhum dos dois se lembra do que aconteceu em seguida. É provável que tenham desmaiado.

***
            Brincar na rua, no bairro de casa, mantinha Ana, seu irmão mais novo, Gabriel, e a melhor amiga, Paula, entretidos por longas horas. Jogavam sempre queimada e vôlei. Andavam de bicicleta e patins. Como sua avó, Ana morava em um bairro um pouco mais afastado do centro de Nova Lima. Ainda menos movimentado: sem comércio e reserva florestal. Uma de suas alegrias era subir ao cume da Arlindo Vieira, a rua mais íngreme do bairro Cariocas, e descer o morro de patins, em trajetória reta, indo no limite de velocidade das rodinhas e sentindo o vento elevar seus cabelos.
            Descia como bala e, às vezes, tinha a sorte do cachorro Zezinho, o pinscher da vizinha, estar solto. O bicho descia no seu encalço, mostrando as presas como um alien, e dava tudo de si para alcançá-la. O peito de Ana batia forte, como se alguém brincasse de bolimbolacho lá dentro, mas ao final, quando Zezinho se cansava, tudo o que Ana sentia era entusiasmo, e continuava a subir e descer a rua para atiçar o cachorro.
***
            Dois anos mais velha que Ana, Paula tomou uma decisão quando completou quinze anos. Fez aniversário e recebeu o comunicado dos pais de que havia se tornado mocinha. Numa tarde de céu azul e muito calor, Ana tocou a campainha na casa de Paula, chamando-a para brincar. Paula surgiu na janela e anunciou que, dali pra frente, não brincaria mais na rua. Não era mais criança.
            Ana e Gabriel desceram o morro sozinhos e não conseguiram se divertir muito naquela tarde. Ana achou tudo muito estranho, esse ato de acordar um dia e não ser mais criança, e ficou pensando quando seria a sua vez, ou se aquela menina, agindo de forma suspeita, era de fato a sua amiga. Lembrou e achou graça, apesar de tudo, da série americana em que os extraterrestres tomam a forma de vírus, entram nos cérebros das pessoas e assumem o controle. Será que Paula havia se tornado um deles?
***
            Ana subia o beco do Rego Grande e notou passos às suas costas. Voltava da escola em uma quarta-feira de educação física, suada e com os músculos latejando. Olhou de ombros e viu um homem de meia idade, barba volumosa e sorriso afável. Fez um cumprimento com a cabeça, disse boa-tarde, e o homem respondeu, dizendo que a tarde tinha acabado de ficar melhor. Ana virou o rosto e continuou a subir a viela. Então o homem começou a dizer coisas estranhas. Ana apertou os passos e o homem também acelerou os dele. Falava que a levaria pra cama. Que a lamberia dos pés à cabeça. Que nunca tinha visto uma bunda tão linda. Ana subiu a escadaria no fim do beco correndo e irrompeu na banqueta, onde havia mais estudantes voltando para casa.
            Ainda ouviu as risadas e o assobio do sujeito lá embaixo e soube na hora que nunca mais atravessaria aquele beco. Embora o homem já estivesse longe, Ana correu o restante do percurso. Chegou em casa tremendo, sem entender direito o que havia vivido, um assombro que nada tinha a ver com o que sentia quando ouvia uma história de terror ou fugia do cachorro Zezinho.




Eduardo Sabino nasceu em Nova Lima-MG, onde vive atualmente. Estreou na literatura com o livro Ideias noturnas sobre a grandeza dos dias (Novo Século, 2009). O conto “Assombros” integra o seu segundo livro de contos, Naufrágio entre amigos (Editora Patuá, 2016), do qual também faz parte o conto “Sombras”, vencedor do concurso Brasil em Prosa 2015.

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