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2 POEMAS DE REINALDO RAMOS

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Voz

O som da vida nasce do ventre da morte
a vida real, é muda
até hoje nada me disse a vida
todo poema que faço ou leio é uma conversa com a morte
Meu temor é quando a morte se cala
e o Pinóquio em seu colo
pensa mesmo ser dono
das coisas que diz.



Para a a Mui Leal e Heroica cidade

de São Sebastião do Rio de Janeiro,

Sede da XXXI Olimpíada Paleolítica da Era Moderna


Um morro que não existe mais guardando uma cidade-fantasma intoxicada
de vigilantes e de soldados, cruzados da ordem
A ordem dos ricos dos donos da praia
O sol esculpe ravinas no rosto dos guardas e o mar sagrado lhes salga
os corações erodidos o castelo desmancha na água todos os dias
e os cruzados do nada se agarram freneticamente a bolinhos de areia
tentando em vão remontar o castelo desfeito (a areia indomável lhes desce
farda adentro e penetra livremente todas as fendas de seus corpos de guerra)
A cidade de areia que foi morro e foi pedra é hoje monumento de sal
e de nada é farsa montada que nem mais o bretão se apraz em mirar
A cidade mentira anoitece no trem nos ônibus nas ruas nas costas do Cristo
Há muito sangue a ser limpo há muito entulho a ser removido é preciso
causar ao forasteiro a melhor impressão possível
A cidade mentira resplandece na orla no vidro espelhado do espigão da Barra
nas lentes dos óculos da moça do posto nove no vidro escuro do blindado luxuoso
parado no trânsito da Avenida Lúcio Costa
Mal sabem esses que nos venderam como espetáculo para um mundo decrépito
que não teremos mais nada a servir nem sequer o clichê requentado da alegria e da beleza
A recompensa do pobre? o direito ao silêncio
Entre o vento e a onda cedo ou tarde a cidade irá embora como embora foi um dia seu castelo
A cidade bajuladora dos forasteiros e dos venturosos
que assassina seus filhos ainda franzinos é a mesma que soterra sua história
Portugal, que viu no mar melancolia fez dele sua narrativa épica o Rio, desde o batismo,
se engana no mar nele se afoga, e agoniza, como o samba, sem morrer (ainda)
Cidade salobra por temer se tornar estátua de sal anda pra trás e não olha pra dentro
Cidade amnésia de bantustões para brancos na terra arrasada deserto de pertencimento e memória
filha bastarda e estúpida da marcha civilizatória desenhada em papel moeda
Cidade-negócio do progresso daninho que nos mata a todos seja na pirotecnia do réveillon
seja na fancaria de teus vídeos comerciais
A ambição porca dos teus usurários e cafetões escava junto às tuas centenas de canteiros
a calha rasa do teu jazigo recoberto de flores de polietileno
Teu amanhã é seu rosto de misse mumificada deformado por mil Pitanguys
no exílio do oitavo andar de seu duplex na avenida atlântica
Que saiba Jean-Baptiste Debret quando te retratou tal qual Basil Hallward à Dorian Gray
te fazendo serva da própria imagem
Que saiba, esse falso Rio, nascido engano
Que saibam os índios que tombaram na sua defesa e saibam os despejados do Príncipe Regente
Que saibam os negros da pequena África e saibam as pedras do morro do castelo
(que forram o hoje o chão do aterro)
Que saibam os escombros de cada casa da Vila Autódromo
e cada uma das centenárias famílias de pescadores da lagoa de Jacarepaguá
Que saibam os filhos órfãos do Cabeça de Porco, da Favela do Esqueleto,
do Morro do Pinto, do Morro do Pasmado, de Maria Angú, do Metrô-Mangueira
Que saibam as velhas casas e vilas do subúrbio que somem dia após dia, invisibilizadas, silenciadas:
Não vai longe o tempo em que todo esse Rio será só um areal sem fim.



Foto: Silvia Izquierdo/AP

*   *   *



Reinaldo Ramos nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1978. É professor de Filosofia no ensino médio da rede pública estadual. Já estudou Cinema, fez mestrado em Bioquímica Médica e foi premiado em um concurso nacional promovido pela Academia Brasileira de Letras em parceria com o Jornal “Folha dirigida” com uma redação sobre os cem anos da morte de Machado de Assis. Participou da coletânea do projeto “Realengo – Poetas pedem paz”, publicada na revista “Germina” e teve textos publicados no blog “Plástico Bolha” e no caderno “Megazine” do jornal “O Globo”. Também tem publicações nas revistas literárias "Um Conto", TriploV" (Portugal) e "O Bule". Em 2011 publicou seu primeiro livro de poesia, "Livro de Mentira". Blog.

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