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A Harpista - Ricardo Primo Portugal

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Ilustrsação: Tania Brassesco



A harpista

(II)

Meus olhos enlaçam tuas mãos
enquanto entoas à harpa
as notas de antigos cânticos  

De teus dedos longos rios
lagos replenos de carpas
rebrotam em harpejos vítreos

Ascendem claras nascentes
desde milênios repartem-se
aos ecos de cada tempo

que palpita à partitura
Ainda a música se engasta
na corrente que perdura

dos anseios que se estendem  
desde as falas que te guardam
mesmo antes que nasceste  

Rente o sonho que persiste
segue ao espelho desta água
como a escrita prende a sílaba

Gerações e dinastias
rios que desembocam ao mar
só por ti existiriam


(III)

a água do mar
em seu incessante ímpeto    
a água do rio
que se renova ao caminho     

a água que te embala ao sono
e seu noturno barco
entre aromas de flores
sonho de Iemanjá

e por dentro dela
vindo o sorriso
da Guangyin seus brilhos
de raios de sois antigos,  

renascidos ao silêncio
iluminado das primeiras
manhãs puríssimas                       
em praias desertas
de claras areias

e também paisagens lunares          
a refletir-se por lagos
serenos e profundos
esplêndidos translúcidos         

e cheios de peixes que recolhem
benfazejos e ocultos  
para nichos suntuosos       

tudo e todos falam por ti
pelo amor de teus dedos
que sustentam o fardo
suavíssimo e frágil
destes secretos degredos 

e te levam para longe
por veredas intangíveis       
sem sentidos sem destino

que a alta noite em seus recônditos           
às tempestades revoltas
madre obscura te abrigue
e traga sempre em retorno   


(IV)

Feito para a água
de recorrentes leitos,
o instrumento harpa,
em seu som escorreito.

E bem assim esta, a chinesa
e mais antiga, que abarca
em cordas, madeiras, cravos,
fluidos de cursos que despejam.

Também para o amor,
turbulenta fonte, mulher
e sombra, vária e policroma,
multifária madrepérola.

E a ti, que, fêmea, és desta água
que represam fendas abissais,
e me alojas, fausta, generosa,        
vaso de meus humores.

Possa eu ser instrumento
à água que amolda ao caminho
da amada forma, e dela aprenda
abraçar-te inteira, feminino.


Os poemas que integram uma das séries de textos que compõem o livro “A Face de Muitos Rostos” (Editora Patuá,2015).




Ricardo Primo Portugal, 53 anos, nasceu em Porto Alegre/RS e formou-se em Letras pela UFRGS. Escritor e diplomata, viveu na China (Pequim, Xangai e Cantão), na Coreia do Norte (Pyongyang), no Equador (Quito) e, hoje, na Bélgica (Bruxelas). Publicou:A Face de Muitos Rostos (Patuá, 2015); Antologia da Poesia Chinesa – Dinastia Tang (Unesp, 2013, com TanXiao, Prêmio Jabuti 2014, categoria tradução, 2o lugar); Dois outonos - haicais (Edições Castelinho, coleção Estante Instante, 2012); Zero a sem– haicais (7Letras, 2011); Poesia completa de YuXuanji (Unesp, 2011, com TanXiao, finalista, 54º Prêmio Jabuti, categoria tradução); DePassagens (Ameop, 2004); As aventuras do Barão do Rio Branco – obra de apresentação da carreira diplomática para crianças (Divulg-MRE/FUNAG, 2002); A Cidade Iluminada– poesia para crianças (Paulinas, 1998); Arte do risco (SMCPA, 1992); Antena Tensa (Coolírica, 1988). Coorganização, supervisão da tradução: Antologia poética de Mário Quintana(EDIPUC/RS – Consulado-Geral do Brasil, Xangai, 2007), primeiro livro de poeta brasileiro traduzido ao chinês. Também tem participações em antologias e em sítios de internet dedicados a poesia e literatura (Musa Rara, Escamandro, Cronopios, Modo de Usar, Tuda, Germina, Zunai, Sibila, entre outros). 

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