Minha cabeça é um cais em delírio
aceso no olho do sol
e no olho da lua
ancoradouro de vozes, cantos e voos
é apenas o centro de um corpo líquido
cujo horizonte não é fio mas contorno
e tudo é margem á espera de chegadas
e partidas
o mundo move-se dentro dela
ilha de espantos
onde tudo acorda e dorme num relógio sem horas
pássaros caem em queda livre para nadar
peixes roubam suas asas para voar
e uma pedra desabrocha na flor da água...
é quando o poema rompe a fina película
de uma atônita realidade
para voar sobre edifícios e pessoas
jogando sobre eles suas plumas de sonhos.
*
Esquinas
Nunca viro esquinas sem antes sentir-me estancada pelo vórtice deitado de seus descaminhos. Elas sempre investem suas pontas contra meu peito, empurrando-me para o vão das ruas. Como se me forçassem ao mimetismo de um reles cordeiro em busca do cheiro de seu rebanho. Recuso o vão das ruas.
Acabo cravando as mãos no cimento frio e pontiagudo de sua divisa para encontrar – talvez - reminiscências ancestrais sepultadas pela turba de falsas civilidades.
Nada vejo.
Silenciosa, essa cegueira me faz dobrar as esquinas.
Sigo passos de assombros e sofreguidão plantados em pedras.
Pouso meus ouvidos sobre o cimento - para ouvir os ecos de um chão desnudado de cinza.
De um chão que não sentiu sede nem fome.
De um chão molhado que engolia passos se alimentando de afetos.
Acabo ouvindo um uníssono canto que me leva à várzea de outrora.
Lá - costuro os caminhos cruzados. Componho uma terra povoada por pessoas sem pressa, conversando com magos e bruxas, modelando - na areia do tempo - seus mitos e deuses.
Nessa terra tudo se move e flui sem tempo ou relevo.
Nela, o espaço está contido no tempo e todo o tempo é senão o espaço mapeado por seus ecos.
Passado, presente e futuro são paralelos olhando-se no sumidouro de seus espelhos.
São linhas criptografadas na contínua invenção da vida.
Espectros de memória aflorada em espasmos.
Os ecos desenham frames colados um a um.
A música reverbera faces, corpos, paisagens.
Tudo se divide e se funde no ritmo martelado de uma nostalgia que acorda ao frenético som buzinas e ranger de pneus.
A esquina é outra.
Tudo volta a ser impalpável, etéreo, e carregado de impossibilidades.
*
UMA TERRA CHAMADA PROMESSA
I
Carrego no peito e na memória
o ocre do chão e do barro molhado
moldado por mil pés
a cruzada de mãos em foice
singrando um latifúndio ausente de piedade
um chão cão
amálgama sob um véu de chuvas
chuvas que lavaram angustias
um quase tudo de crueldade
Uma terra úmida de histórias
um algo sobre-humano de corpos ausentes de sujeitos
faces sem nome ou sobrenome
uma história povoada de impossibilidades.
impossibilidades de quase gente caminhando a esmo
Senda estrada
serpente de martírio
que carrega mil terços de prantos
mil terços de gemidos
um chão de dor
a sombra da dor que não quer deixar o chão
II
Guardo!
uma terra
estrada nauta assombrada pelo fogo e pelo poder da marca em brasa
uma nau sem quilhas
sem velas
sem mar
uma nau de chão
Passageiros do destino de morrer
de desmorrer a cada dia no ventre da mata
morrer no arrancar de cada raiz
desmorrer no plantio de cada semente
A lida de sangrar a terra e ser sangrado por ela
o massacre da estima de plantar e não colher
o partir e o repartir a tristeza de não ter morada
de ser presa da ganga impura
Passageiros do destino de ser coió à força
sob o poder empunhado por pistolas
sob o olho da pólvora mirando toda lavra
sob o sol
sob a chuva
e à sombra única das nuvens
III
Um cordel de viventes isentos de toda maldade
extirpados de liberdade
expurgados do desejo de desejar
a sorte em chagas nas mãos
as mãos vazias de futuro
mãos que já não tem forças para apelar
Os apelos cravados em pés
olhos de súplica
mas apelar pra quem?
se essas mãos
se esses pés
se esses olhos são reféns
na ilha da ilha da soberba
cercados e ameaçados pelo grito de quem prende e escraviza
Um tropel de dor à flor da carne de mil vidas
a sofreguidão de promessas não cumpridas
mil promessas de vida soterradas por desejos desfeitos
mil desejos desfeitos nessa estrada turba
cava e cova de mil virtudes
mil virtudes caminhando sem caminhar
Um caminho e um descaminho
testemunha de um Círio infindo
no sempre de partilha pelo pão e pelo sangue
o pão e o sangue de um deus que nunca nasceu
um chão deflorado de paz
deflorado de fé
Uma fé sem deus
uma quase fé
a fé de rebanho de toda gente
vindos do quase nada
cobertos de toda espera
vazios de sonhos
De onde vêm?
Para onde vão?
Sempre passando
Sempre passando
IV
Uma passagem marcada de memórias
no rastro das botas
as folhas mortas pisadas sob o mesmo suor
molhadas de infortúnio
Um chão de infortúnio
de muitas memórias
poucas palavras e silêncio
um silêncio que chora e vinga outro
um outro chão chorado por tanta prece
sonhado por tanta promessa
Um chão de promessa
uma terra de promessa
uma promessa
uma promessa
* * *
Wanda Monteiro, escritora e poeta, é uma amazônida, nascida às margens do Rio Amazonas no coração da Amazônia, em Alenquer no Estado do Pará, Brasil, reside há mais de 20 anos no Estado do Rio de Janeiro mas só sente-se em casa quando pisa no leito de seu rio. Advogada e mãe de três filhos, nunca se afastou de sua vocação. Além de escrever, exerceu a atividade de revisora e de produtora editorial durante muitos anos. Participou de vários projetos editoriais de pesquisa histórica realizados no Estado do Pará e sempre publicou seus textos literários em revistas literárias, blogs e sites. Nos últimos anos, a escritora tem se dedicado exclusivamente à literatura, com várias obras literárias ainda não publicadas, participa, como colaboradora, de vários movimentos culturais de incentivo à leitura ,em várias regiões do Brasil. Publicou dezenas de seus textos poéticos na Antologia Poesia do Brasil do Proyecto Sur, participando dos volumes IX, XI, XIII, XV. lançados no Congresso Brasileiro de Poesia no Rio Grande do Sul. Obras publicadas: O Beijo da Chuva, Editora Amazônia, 2009, Poesia; Anverso, Editora Amazônia, 2011, Poesia; Duas Mulheres Entardecendo, Editora Tempo, 2011, Romance (escrito em parceria com a escritora Maria Helena Latini); Aquatempo – Sementes líricas, Editora Literacidade, 2016, Poesia.