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4 poemas de Bruno Molinero

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Ilustração; deviantART


marcela, 43, casada

matei, sim senhor
porque quis
não, até que era bonzinho
na gaveta da cozinha. uma daquelas grandes, sabe?
isso, ele estava no sofá
de costas
não, não me viu
dei dois passos e a lâmina escorregou para a cabeça dele
não tirei porque mancharia ainda mais o tapete
ora, se sabe, por que pergunta?
desculpe. sim, o corpo ficou lá
depois saí
mansão. era muito rico
não. deixou tudo para as meninas
eu sabia, sim senhor
porque quis, já disse
cansei de subir em pau de sebo. deslizar fácil não tem graça
sim. mas vou ficar muito tempo?
é que deixei a panela no fogo 



ângela, 51, não tem ovos

nunca antes tinha tomado sopa de tartaruga
até que meti a gertrudes na panela

ela mereceu
:
decidiu colocar um ovo bem na minha frente
acredita?

vinte anos juntas,
desde que a bicha parecia um enfeite de banheiro,
e nunca tinha feito nada parecido

aí… cloc

botou a casca
melecada
ao lado do meu pé

justo ela
comprada para nos fazer companhia
quando descobri que não tenho óvulos próprios

tomei o caldo frio
ainda ouvindo-a borbulhar dentro do casco


Ilustração: deviantART


nathalia, 22,bdsm

tirou minha coleira
e disse que eu estava livre

foi a única vez que machucou



carolina, 15, queimou

pegaram tudo

geladeira armário
banco cadeira fogão
cama pia toalha TV
colchão
roupa discos tênis bicicleta
copo isqueiro baralho

nenhum livro

a gente tinha acabado de montar a biblioteca
bem ao lado da vendinha
:
canjica
temperos
bolo
doces
tortas

e livros
sempre à mão

queimou tudo

foi um estalo de noite
aquele laranja
pintando todas as casas
e uma correria
para salvar o importante

ombro a ombro
de pijamas
ficamos em cima do morro do campinho
vendo o fogo lamber nossas vidas

alguns até ajudaram os bombeiros
a controlar a fome dançante
enquanto eu gritava para jogar a água do outro lado
salvar a biblioteca

ninguém ouviu
queimou tudo

de manhã
enxada na mão
vizinho era barata tonta
cachorro sem dono
olho baixo
um chinelo de cada cor
costas apoiadas no carro
lotado de gente sem casa
colchão no teto
homem vestindo roupão da sogra
ferro retorcido
cinza onde era vermelho
marrom onde era azul
árvore sem folha
camiseta na cabeça

fita amarela
em volta do meu crematório de histórias

queimou tudo

menos
uma página de drummond
e um vaso com planta
palito de sorvete fincado na terra
que seguiram verdes
no amontoado de telhas e tijolos
quebrados



Bruno Molinero é jornalista e escreve para a Folha de S.Paulo desde 2010. Foi vencedor do prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog, e representou o Brasil no World Event Young Artists, em 2012, na Inglaterra. Os poemas desta página são de seu livro de estreia, Alarido (ed. Patuá), premiado pelo ProAC com a coleção Patuscada 2. Contato: livroalarido@gmail.com .

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