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(Pier Toffoletti - reprodução) |
"as meninas astrólogas"
para Ana B. Domingues
as meninas astrólogas não consultam o personare
têm tábuas de esmeralda, efemérides bulindo
embaixo do travesseiro junto com o celular
e o arcano XIX para dar sorte e magnetismo
com o boy e outras magyas do reino dos céus.
descobrem três cabeças arrancadas na hidra
e o diabo da vênus mal aspectada, a lua
fora de curso, a lua fora de curso...
"aquilo que está acima, aquilo que está abaixo"
-- as meninas astrólogas sabem o que está
acima dos seus pescocinhos de cisne, conhecem
o tigre embaixo da cama e o que fazer, o que fazer
em caso de súbita despressurização.
as meninas astrólogas mandam selfies explicando
os mudrás para amigas em crise, oferecem
a restauração dos meridianos do corpo, oferecem
sinastrias, mapas combinados e revoluções,
sobretudo revoluções.
a meninas astrólogas se preocupam excessivamente
com a lua fora de curso e o movimento retrógrado
de mercúrio, contam nos dedos os dias que faltam
para dias melhores, contam os dias para a chegada
dos dias e para a virada da lua em touro, com banquetes
e sacrifícios virginais. as meninas astrólogas,
as meninas astrólogas são, na verdade, bacantes
anacrônicas com seus cálices transbordantes e
suas certezas infinitas sobre o infinito do universo.
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Anel de Plutão provocado pelo Sol (fonte: NASA) |
"diário de plutão"
no núcleo profundamente azul
do poema
é difícil manter
os planos
sensoriais
em seus devidos lugares.
não sabemos se esta casa
com pé direito infinito
-- essa ruína delicada
que você inventou --
é mesmo segura.
espreito entre crateras
unfuego aplainado,
uma arquitetura cálida
de vulcões
sobre planícies geladas
e a verdade é que
não se dissipa
não se dissipa nunca
o que o amor causa ao poeta
[o obscurecimento da luz
no aprendizado da treva]
essa licença excepcional
para escrever barbaridades,
escuridões, amenas desculpas
para pequenos assassinatos.
é tarde:
para iniciar a noite
de fúrias e os copos descartáveis.
é imensamente tarde
para enviar os convites, as cadeiras,
as flores e a beleza desmesurada
dos inícios no fundo
me atemoriza.
.....................................................
"diários são perversos,
até que algo seja perdido,
até que o mistério te trespasse
como um arpão
e você estale, crepitando
o suave espanto: o desejo,
o desejo fremido
por aquilo que se aquieta lento
no torvelinho
de um planeta muito recente."
"hexagrama 29"
:
suturar a falha sísmica
que te compreende
em cada golpe;
anestesias (uns goles a mais,
um a menos,
não importa). inscrever a alegria,
o terror,
liberar os galgos
no perímetro insubordinado
da tua caixa torácica,
pois você
você me ataca
onde sou
dolorosamente permeável;
frequenta lugares perigosos
no meu peito
e te inauguro de escuro:
teu delírio a seiva o suco.
sucumbo de exaustão
aos pulinhos,
respirando o fogo
em i n t e r v a l o s
de compasso opressivo.
a noite,
nos teus ombros,
é clareira aberta,
geografia finita
ao susto que antecipa
a caça, a carnificina.
conheço de cor
o sonho do deus
que habita
o teu grão.
"mulher com vazio descansando" ou "branco com céu à esquerda"
me diga por favor
que não se trata de um desastre,
não importam os sonhos,
as enchentes e ventanias,
os copos transbordantes, o peito
aceso.
estou toda
dobradiças e umbrais
desde a manhã,
tingida em branco cru, paisagem
com céu convoluto à esquerda.
mas isso não é um desastre,
é certo.
apenas indica
que padecemos de
qualidades extintas
como as dos pássaros
demasiadamente gordos
com seus ossos pneumáticos
incapazes de alçar voo
e desse amor indefensável
por coisas perigosas
: um ponto de ancoragem
ínfimo
entre a tua pele
e o meu desejo.
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Alejandra Pizarnik |
“pizarnik”
o mar não tem dono em terra,
apenas até que
abra o poema
e persista: abra o poema,
até que o último náutilo pise
em tábua flutuante
- abre o poema.
porque o mar
não tem dorso em terra
até que abra o poema.
porque não te possuo,
não te possuo nunca
até que abra o poema
e embora eu não te possua
é preciso que estejas aberta,
e o poema
fundamentalmente incompleto.
e a fenda a te percorrer inteira
como uma incisão de autópsia
e que, dentro da fenda, onde
o coração fraqueja, você
estremeça
e ainda assim, abra o poema
até que seja
apenas até que
abra o poema
e persista: abra o poema,
até que o último náutilo pise
em tábua flutuante
- abre o poema.
porque o mar
não tem dorso em terra
até que abra o poema.
porque não te possuo,
não te possuo nunca
até que abra o poema
e embora eu não te possua
é preciso que estejas aberta,
e o poema
fundamentalmente incompleto.
e a fenda a te percorrer inteira
como uma incisão de autópsia
e que, dentro da fenda, onde
o coração fraqueja, você
estremeça
e ainda assim, abra o poema
até que seja
outro,
que seja asa
que seja asa
ou
secreção
secreção
sem corpo.
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Rita Isadora Pessoanasceu no Rio de Janeiro em 1984, graduou-se em psicologia, estudou a melancolia na poesia de Sylvia Plath no mestrado e agora estuda os duplos animais na literatura para sua tese de doutorado. Tem enverado no terreno da tradução e alguns de seus poemas estão publicados em http://www.revistasauva.com.br/2015/05/poemas-de-rita-isadora-pessoa.htmle no bloghttp://desencaixotandorita.blogspot.com.br/. Email: ritaisadora@gmail.com