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OLGA SAVARY RESENHA MÁRCIA CAVENDISH WANDERLEY + POEMAS

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O Mar de Dentrode Márcia Cavendish Wanderley
por Olga Savary


Márcia Cavendish Wanderley tem uma das maiores vocações para a consciência poética com que me deparei na vida. Sua lucidez ilumina nossa inteligência porquê a sua é uma inteligência luminosa. Por isso é que no poema "Terra degradada" Márcia diz sem rodeios que depois do Big Bang, "o caos inaugural está na origem do que somos", uma vez que "caos não falta a esse planeta humano". E que ao "acaso os homens chamam Deus/ e tratam de adorá-lo em altares diversos// Assim também nasceram os sentimentos sempiternos/ que afastam os homens e os desgovernam/ em lutas onde a cor, a origem e a religião/ promovem o ódio e a morte entre os da "raça humana//".

Como ela afirma, "coisas práticas honram a nossa inteligência. embora dela só usemos dez por cento". Quem sabe, por isto "fazemos a guerra/ e tantas outras asnices num momento/ de condução fatal ao fim dos tempos/ na destruição da nossa pátria cósmica,/ o comovente mundo azul em que vivemos". É a poética afirmação do cosmonauta russo Yuri Gagarin que ressurge na poesia de Márcia: "a terra é azul".

A poeta está inteira, íntegra  no poema instigante "Companhia" (não viva a minha vida)

Ela sempre reclama...

"...Não viva minha vida, viva a sua.
Mas o que é uma árvore sem os ramos
e sem os troncos que a seguram?

No man é uma ilha, disse Donne
e concordo plenamente:
eu não sou uma, sou um arquipélago
sou trezentos e cinquenta"

Rebelde, selvagem, (no melhor sentido  da palavra) pois Cavendish é uma primitiva requintada (como me considero também, dentro da intelectualidade, palavra que respeito e ao mesmo tempo menosprezo por sua pompa. Cavendish, esplendorosamente humana, surpreende o tempo todo em seu belo livro Mar de Dentro (Rio de Janeiro, Editora da Palavra, 2015). Esta editora que por sua vez foi criada por Helena Ortiz, outra grande poeta que criou e fez funcionar durante  muitos anos o Panorama da Palavra, sarau de poesia que apresentava em teatros do Rio de Janeiro assessorada pela brilhante Ana Palma.



A pernambucana Cavendish é por mim acompanhada  há muitos e muitos anos mas tão distante e digna que não me fez saber, nesses anos todos em que convivemos, dela e de sua produção poética. Seu marido, Jorge Wanderley, poeta, ensaísta, tradutor de Paul Valéry e Professor de Literatura brasileira da UERJ, apresentou meu livro Anima animalis: Voz dos bichos brasileiros (editora Letra Selvagem, São Paulo, que recebeu o prêmio APCA para poesia, livro com poemas em português espanhol, francês, inglês, italiano e finlandês; ilustrado com xilogravuras do artista plástico Marcelo Frazão) e eu, sempre sua admiradora como singular mulher forte e ser humano admirável de personalidade invulgar e delicada, tudo ao mesmo tempo.  Uma honra para quem a conhece.




Pois então, Márcia Cavendish Wanderley, além de suas imensas qualidades humanas, características da fortaleza das mulheres pernambucanas é Mestre em sociologia e Doutora em Literatura Brasileira, tendo realizado estudos de Pós Doutorado em Montreal, (Canadá) Yale (EUA) e USP (São Paulo). Atualmente é professora aposentada da UFF - Universidade Federal Fluminense (RJ), mas continua ligada à Pós graduação em Sociologia e Direito, onde ministrou cursos nas áreas de Gênero e Literatura e Introdução aos Estudos do Direito através do Discurso Literário. Tem vários livros publicados, entre eles: A Voz Embargada: imagens de Mulher em Romances Brasileiros e Ingleses do Séc. XIX (EDUSP, 1995), Do Jeito Delas: Vozes Femininas da Língua Inglesa (RJ, FAPERJ/ Ed. 7 Letras, 2008), Prosa de Ficção no Brasil (RJ, FAPERJ/ IBIS LIBRIS) e dois livros de poemas: O Terceiro Jardim (Rio de Janeiro, Editora da Palavra, 2006) e A Idade do Entendimento (Rio de Janeiro, Editora da Palavra, 2012).

Mar de dentroé portanto o seu terceiro livro de poemas publicado. Neste, o penúltimo poema, “Bad Girl” conta uma pequena história enigmática, surpreendente, suave e selvagem ao mesmo tempo. Um enigma:

"Uma jaguatirica acuada,
presa em meu carro, me estende a pata.
Feriu-a ao buscar humano contato
Submissa a seu olhar tento ajudá-la.
O medo impede o carinho necessário.
Ela entende, e sai vagarosamente
pela porta que lhe abro."

Como a fera, a poeta esta presa, amalgamada à magia e à estratégia da poesia, da sua poesia de Mar de Dentro, de seu Recife, de seu Pernambuco detentor de uma das mais válidas e poderosas poesias do Brasil.

Um certo masoquismo, entre irônico e sensual, próprio da poeta, sagra este poema:

"Natureza Viva

Rasguei a coxa na gaveta rascante
fenda rubra em carne branca
com duas bordas gigantes
como se fosse um enfeite.

Obra prima de estética beleza, quase tragédia.
Se não doesse, seria puro deleite"

Este outro, “Escrever Poesia” é um achado para coroar esta insólita personalidade poética:

Escrever poesia não é fácil.
É preciso ter dentes vorazes,
uma sede insaciável,
subir ao ar como fumaça ondulante
descer ao chão de pedras, sem sandálias.
Sentir no verão o frio das geleiras
sonhar no escuro como um condenado
e acordar com o beijo do vento
sofrer como um cavalo que se dilacera
e à dor permanecer distante
sentir diante de uma folha em branco
o desejo ávido dos amantes.


TRÊS POEMAS DO LIVRO MAR DE DENTRO


Que pena!

De matéria estelar fomos forjados.
Nossa pele translúcida reflete
toda luz deixada como rastro de astros que vagavam  pelo espaço
depois do inconcebível Big-bang

Dos nossos ancestrais ganhamos a ciência das rotas dos cometas
das influências celestes sobre os mares, sobre os ovos das galinhas 
e sobre o corte do cabelo das meninas.

Coisas praticas a fazer que certamente honram nossa inteligência
que é plena, mas dela apenas usamos dez por cento.

Por isto fazemos a guerra, e tantas outras asnices num momento
de condução fatal ao fim dos tempos,
na destruição da nossa pátria cósmica –
O comovente mundo  azul em que vivemos.

*  *  *

Divinos

Desacostumada à festa dos sentidos
não esperava mais rosas nem vinhos
mas as faces do invisível  são infindas
mal se sabe a luz que brilha  na retina
e o delicado toque que bem-vindo
faz vibrar o que  estava adormecido  
os caminhos do amor são divididos
mas  divinos.

*  *  *

Nostalgia

Vivemos tempos de grandeza, ruína, extermínio,
em ritmo alucinante
É grande a batalha nos leitos, enquanto na rua
homens vêm e vão, lançando archotes que incendeiam
ônibus às pressas abandonados.
Minha´alma deplora o presente, nostálgica de um passado
onde crianças rolavam seus patinetes nas estradas 
desculpando-se por incomodarem a quem passava
ou  às famílias sentadas, conversando nas calçadas.




*    *    *




Olga Savary nasceu em  Belém do Pará, em 21 de maio de 1933. É escritora, tradutora, jornalista. Tem 20 livros de poesia e ficção pessoais, e mais de 980 coletivos (centenas de antologias que organizou e integrou no Brasil e no exterior). Convidada, é a única escritora a constar da Antologia Poesia da América Latina (entre apenas 18 poetas, entre os quais dois Prêmios Nobel: Pablo Neruda e Otávio Paz, editada na Holanda em 1994). Integra as antologias Os Cem melhores contos do Século e Os Cem Melhores Poemas do Século (Rio de Janeiro, Objetiva, 2000). Recebeu mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de poesia, conto, romance, crítica, ensaio, tradução e jornalismo (3 Jabutis, vários prêmios  UBE/ RJ, UBE/ SP, vários prêmios da Academia Brasileira de Letras, nas várias áreas literárias, inclusive Prêmio Machado de Assis para Conjunto da Obra, o Prêmio Internacional Brasil/ América Hispânica para Poesia, etc). É pioneira em publicar haicais no Brasil no início da década de 1940, menina ainda, e depois em traduzir os clássicos japoneses do haicai. Pioneira também em publicar o considerado primeiro livro com tema erótico no Brasil e em ter organizado a primeira antologia de Poesia Erótica, e em utilizar palavras do idioma tupi em tudo o que escreve, seja poesia, conto, romance, crítica literária e de artes e ensaio. Tem mais 10 livros no prelo e a sair. Pelos editores de sua obra no Brasil e no exterior está colocada em mais de 300 sites. Mereceu o prêmio Especial da Diretoria da UBE/RJ para Conjunto da Obra em 2013 e o Prêmio Monteiro Lobato da Diretoria da UBE/RJ, em 2014, na Academia Brasileira de Letras. 




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