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A poesia de Ramon Diego

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Ilustração Cecília Silveira

ASCENDÊNCIA


Nasci ascendente em aquário,
do lado em que a lua
é mais funda;
nasci ascendente
em desastre,
do verso que vibra 
nos dentes,
lavados em bicarbonato.
Das pás que cintilam
no asfalto,
no voo
d’árvore mutilada.


Decorar

Se aprender uma coisa de cor
é mostrar ao nosso coração
o que vale a pena e a lida,
não se aprende de cor
por inteiro.

Só se aprende de cor
com o tempo,
que transforma
na lida, a palavra,
decorando
a nossa experiência.


DOMINGO

O dia se despe
na cortina velha
que balança os móveis.

A tarde engatinha
pelo gelo inquieto
na dose de gim.

O homem chacoalha o copo
mistura as horas e,
como num passe de mágica,
bebe-as de um gole só.

Billie Holiday reclama seu espaço
ao fundo,
no canto esquerdo da sala,
engolida pela sombra
esparramada na varanda.
I honestly believe that you are bored
You’ve change”.


EM DEFESA DO LÍRIO

Há um lírio no poema
exposto
em um vaso
de caos
e vaidade.

o estrume
é sua matéria-prima
mas renegam-lhe
a propriedade
de ser ele, profundo
e profano.

De sua boca ser cu
e saudade.

Há uma pátria
na terra em adubo
que impele o poeta
ao fracasso.

MARÉ BAIXA

Eu tenho medo do mar!
Eu tenho medo das águas
contra as solidões esparsas
lapidando as horas no tempo.

Eu tenho medo da força
tempestuosa de sua ira
e da sugestão exata
de sua melancolia.

Eu tenho medo do mar
porque o mar não cabe em si
e cada onda que sangra
ata-nos à existência.

Tenho medo do mar pois,
logo eu, fadado a poeta
de olho manso às imensidões
tremo aos menores sinais
de nossas incompletudes.


ROTINA


O poeta acorda às seis horas,
Logo lê um jornal salpicado
De cinzas e melancolia.


Ele mora em uma casa apertada
Onde mal lhe cabem as ideias.


Não há rima que engorde seu prato
Nem amacie seu sono intranquilo.
Mesmo assim não lhe falta trabalho...


O poeta concorre com o dia
Esticando sua vida impossível
Em um caixa de supermercado.


A maquininha do caixa
a cada produto em comércio
Responde um “sim” a suas vendas
E mais um não aos seus versos.


Quando enfim chega a noite em despacho
Ruminando a lavoura do tempo
Incorpora a imensidão do ômega
E não há um minuto sequer
Que não seja o carrasco e o oprimido.


Sua matéria desmancha aos desvelos
De um beco, dourado e soturno.
Sua energia é uma infiltração
Que nos cega a certeza dos olhos.


Mais um dia se vai e a poesia,
em rotina,consome-lhe a carne
E seu coração em brasa só almeja
que as pessoas falem: “meu bem...”.


RUBRA


Há uma brisa
em torno
da mulher 
envolta em
seu ventre.


Pétala rubra
sob o golpe
seco
que engasga
em silêncio.


Canto disperso
que ensaia
os motes
da revolução.


Tempo
Quando te deres vontade
tomas a tarde de impulso!
Queima tua tarde
como quem teme
 
que aquele seja
teu último trago.
Desfrute a teia sedosa
e aproveite
as sombras
 
do dia.
Queima tua vida
baixinho
na escadaria
da noite.


VIA LÁCTEA

Há um gato no avesso da noite.
Me incorporo ao bigode
de estrelas
que compõe
o seu rastro insone.


Seu suspiro
é um pesar inquieto
como a cauda
de um
cometa
em chamas.


Há um gato no avesso da noite.
Seu miado revela a malícia
dos que, há muito,
não dormem, nem comem,
sob a pedagogia do corpo.


Nos seus olhos
dois sóis se equilibram
farejam e se impacientam,
aos prazeres da sombra
no húmus.


Há um gato 
no avesso da noite.
Espelhado na luz que o incendeia,
a tigela em que ele reflete,
constitui a sua via Láctea.



Ramon Diego Câmara Rocha é estudante de letras português/francês pela UFS e reside na cidade de Nossa Senhora da Glória, no estado de Sergipe. Por duas vezes consecutivas participou das antologias TOC140 – Poesia no Twitter, organizado pela FLIPORTO. Também teve parte de seus poemas publicados em revistas como a Cumbuca, a revista Blecaute e a revista Germina.

Ilustração Cecília Silveira


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