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Ilustração: Olga Trusova |
As primeiras neves inauguram a beleza pálida do inverno sem fazer abstração do seu caráter rude
I.
Os longos corredores adormecidos pelo céu invernal, as altas paredes maciças protegem o interior da luminosidade acinzentada das noites brancas. Da ponta dos dedos, você acaricia o lenço ainda húmido das lágrimas dela. Parecia ainda tão distante o momento em que vocês se cruzaram pelo primeira vez. Seria o frio capaz de guardar suas lagrimas por tanto tempo?
Este esbranquiçado borrado, esboço de imagens celestes aproximam das nuvens o telhado do museu. Diz-se que o azul cristalino dos olhos das pessoas daqui é irrepresentável, não há cores na palheta do mais hábil pintor que permitiriam reproduzir este azul, pelo menos é o que vem confirmar o cartaz exposto ao lado da grande porta de madeira: o alfabeto cirílico.... desenhos de criança?
Já havia percebido esse detalhe, que não era um, ao olha-la durante horas, apoiada sobre o terraço a fumar. Seus olhos se tornavam envermelhados em alguns momentos: devido à neve? Ao seu natural melancólico? – afinal, ela dizia não amar nada aqui, exceto a cerveja em sua mão e os cigarros que iam e vinham entre seus dedos e seus lábios.
Graças à altura do teto, as notas entonadas pelo velho enrugado, que mal porta sua barba amarelada - o que dizer de seu violoncelo – ressoam insistentemente. A madeira maciça, gelada das portas face às suas mãos não é indiferente à música. De onde vem este frio que sente nas mãos? Do metal, da madeira, das lagrimas de ontem? Ao subir rapidamente as escadas seu pulso acelera. Ela perguntara um dia, com a mão direita delicadamente apoiada sobre o seu peito, de modo assustadoramente inocente: “O que bate aqui?” . A sua resposta, de uma banalidade pueril... : “E o meu coração que bate.”
II.
Seus olhos azuis de um desespero sem signos nem símbolos, seus gritos surdos, colado ao colo de sua mãe. O ninar dos braços da jovem ao cabelo esbranquiçado, de uma tonalidade suja, perde sua força frente ao olhar perfurador e severo da guia turística. De sua boca, uma enxurrada de palavras vem dar contorno ao som longínquo do violoncelo. ‘’A ancestral necessidade de preencher os espaços vazios”. O som toma forma, ressoa em seu peito.
E todos esses senhores de barba a olha-lo do canto dos olhos. As primeiras gotas de neve derretida são absorvidas pelo assoalho amarronzado, assim como as lágrimas do recém-nascido.
III.
Imaculada branquidão da neve, mero verbatim. As botas recobertas desta meleca amorfa logo tornam-se negras, pesadas e sujas. Ao passar a primeira porta do museu, o tempo da neve retoma sua forma inicial – água suja – é questão de tempo. Apoiado sobre o canto da única janela da sala você observa a avenida praticamente vazia. A noite sempre volta.
Minsk, Inverno de 2014.
Ricardo Lindenberg nasceu em São Paulo no ano de 1985. Bacharel e Mestre em Filosofia e Letras Clássicas pela Universidade de Paris, mora atualmente em Kiev (Ucrânia) onde ensina filosofia no Liceu Francês de Kiev. Atua igualmente como professor de língua portuguesa na Universidade Nacional de Kiev (Taras Shevchenko). Tendo morado em diferentes países, Estados-Unidos, França e Ucrânia, tem um grande interesse pelas línguas e pela possibilidade de fazer com que as culturas dialoguem. Além da paixão pela filosofia clássica, tem grande interesse pela poesia de Iessienin, de Blok e de Tsvetáyeva, assim como pelos autores franceses do “Nouveau Roman”.
Endereço eletrônico: ricardo.lindenberg@yandex.com