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Seis poemas de Constanza Muirin

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A memória mórfica das enseadas ingénuas
lei de cordas percorridas de voos
aristocracia de gárgulas a aprender a leveza do corpo
a pedra em esforço contra a telecinese de um anjo de gelo
depois o sol imposto aos olhos
a afirmar a verticalidade dos ossos na areia
a elasticidade das ervas obrigadas a crescer
invertidas sob os passos da luz
a noite obscuramente reencontrada com o mar
dormente



A PORTA INCENDIADA

onde a sombra o asfalto suicida
o poente
onde a expansão da chuva – no Espelho – em frente
tu a clamar o vácuo
arco de água claro
se depois
na íris aberta do campo
as pestanas de erva se agitassem
com lágrimas orvalhadas
de alguns cometas estilhaçados
pulsasse suspenso o pólen
os risos estalados nas esplanadas
onde o torrado café e o pó dos cigarros adejasse

há uma porta incendiada
uma porta alta por onde atravessam as nebulosas
que a morte
com uvas pesadas pequenos casulos
abelhas
libertasse
onde uma a uma de versos renascessem crianças
onde


 
NO INTERIOR

For sale: baby shoes, never worn

Exalto
as moléculas medusas de momentos das manhãs memória
as mães
nas mãos transparentes das crianças trémulas
ainda a pisar sóis a queimar as heras
a ceder a inocência aos bosques da sabedoria
onde os assassinos saqueiam a cortiça silenciosa
para apaziguar a velhice dos astros divinos
com peso a mais nos machados para conseguirem sorrir

sob a noite o lume certeiro das lâminas manchadas
sob as contas siderais dos coágulos púrpura
orvalham intoxicados fantasmas inocentes e inseguros
há um machado que julgámos puro a silvar na erva
há uma ama com asas de anjo a persegui-los em cada um de nós
e rodas infantis impiedosas espalhadas pela floresta como ampulhetas douradas
e a lua em contagem minguante a pratear todos os silêncios


 
O GRITO

a página encosto-a docemente à garganta
o dedo ao instante mais preciso do universo

que o calar orvalhe no desassossego do espasmo
que o calor coagule nas implacáveis formas do corpo
ainda longe
afinal aqui

o odor vermelho envenena os olhos as narinas os sonhos
abrigados pelo silêncio onde neva o sacrifício vermelho onde
as mãos se avultam e se repetem no lento gesto de ferir

a página ceifa a faringe arriscadamente
devagar
e a sinfonia vermelha do dilacerar capitula contra a fronteira onde
o universo inteiro adormece
subitamente
e as unhas demoradas nos impulsos vermelhos
apressam-se a devorá-lo na boca do dedo
- o grito o grito

depois
devagar
- a respiração


 
PODIAS SOBREVIR NOS JARDINS DE LUA

Podias sobrevir nos jardins de lua
onde as folhas de prata se adiam quietas
onde a água das fontes esvoaça em câmara lenta
devagar
onde as garças fátuas desaparecem
com o toque laminar de um ferir de asas

Podias sobrevir nos jardins de lua
encoberto pela mascarilha de astros que te votei
trespassada nos olhos para poderes ver
as escamas da noite as pétalas brancas dos cisnes
o véu de prata que aproximei deliberadamente de ti
onde escondo o corpo do verbo não dito

Podias sobrevir nos jardins de lua
entre os labirintos onde adio a mão
podias expiar o gesto da mudez
resgatar o semblante de um sorriso espelhado
em teu expirar demorado sobre o acordar das folhas
sobre o arco do ombro branco e nu
sobre o anuir dos meus cabelos
suspensos na sinuosidade de um beijo

Podias sobrevir nos jardins de lua
podias impelir o arrepio do teu respirar de encontro à pele
onde contas de estrelas se enterraram na tua espera
no vinco lúbrico das espáduas
podias sobrevir nos jardins de lua
com tua boca amarga de estátua aberta
que se antecipa ao sussurro das palavras
que segrega ruas e lagos na frieza dos meus dedos
que goza mesquinhamente com a fragilidade
com que paraliso o percurso deles até ti

Podias sobrevir nos jardins de lua
onde os cisnes jamais envelhecem
onde as fontes nunca se apagarão
onde o branco das asas refulge
pelos veios de prata das folhas sempre jovens
para perderes o medo nas esquinas dos labirintos
onde estremece o distúrbio de te esperar
dissimulado por um sorriso que também não morre nunca
o sorriso triste que obedece à tua coragem
à tua coragem
de não querer cair


 
POÉTICA

Há caleidoscópios no interior de certas bibliotecas
que se conservam na abóbada regular das resignações
de simétricas esperanças de persistentes palavras
com emaranhadas aranhas nos filamentos da hesitação
a aterrar na luminosa folha da intenção imprecisa
a visitar as estátuas
a amargar a rima

na convalescença da pedra
por entre condutas de gás lacrimogéneo
bibliotecas inteiras voltadas para a tarde
num assobiar de dentes de tédio
onde num amarrotar de poetas
apenas um reflectido dilúvio de noites certas

íris onde semiluas de aparição vagas atravessassem
os livros as mãos carregadas
as clavículas das letras apagadas
as letras taciturnas as letras coalhadas
na platónica cidade com o suprimir do grito definitivo
com a mudez dos mimos a penetrar os corredores
das cativas palavras decisivas

pelo olhar triste da estátua que passa
pelo estreito sorriso de uma ideia marioneta

jaz o Poeta
jaz o Poeta Último
na república incompleta
jaz o Poeta


*palavra: Constanza Muirin
*seleção: mallarconselho - Andréia Carvalho
*imagem: Eduard Bezembinder




Constanza Muirin mora em Lisboa. Escreve aqui e aqui.



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