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Ilustração: Kris.K.G.Photography |
ELEGIA NO EXTREMO
Vem o vento e te espezinha,
vem a chuva e te devasta.
Vem a noite, erma e sozinha
(com seu manto de segredo,
com sua capa de agrura,
com sua carga de pasmo),
e te conclama, e te arrasta
para onde há distância e medo:
para dentro de algum sono
que só se dorme por fora,
que só se dorme desperto —
entre os mapas e os caminhos
e os desertos do sossego,
sempre aguçados de espinhos.
Vem o ocaso com seu nada,
vem a sombra com seu carro
(e o silêncio que te enfada,
que te faz dormir mais cedo,
mas do qual não há sacar
um grão de riso, uma pérola
que se possa comerciar
nas feiras da dispersão).
Vem o pasmo com o seu peso,
com o seu latido e o seu asco,
e a chuva com o seu arpão
e o silêncio com o seu casco,
com a sua farpa e o seu dente
se abatendo, decidido,
sobre o dia que não foi,
que durou esclarecido,
mas passou completamente
e só deixou, para o sono,
um suvenir de cascalho,
um falso cristal de aurora
e uma semente de altura
para florir no abandono.
(E só deixou no teu medo
o seu aviso estridente
que há de durar até quando.)
Vem a noite, erma e sozinha
(com seu manto de segredo,
com sua capa de tédio,
com seu bordado de queda),
e te empurra, e te desloca,
e para fora te arrasta
(como um feitiço, uma doença,
para a qual não há remédio),
como um peso que te esmaga.
..................................................
Vem o vento que te gasta,
vem a chuva que te alaga.
ARCO-DE-PUA
Turismo na incerteza
e os ventos derrotados:
quem escreveu a carta
quem não subiu à torre
quem se cansou do nado.
(Asas que agora são
como fardos ou lastros —
e o gume já embotado
da faca predileta.)
Férias entre os leopardos
e uma cama de espinhos:
quem subiu à montanha
quem não achou a pista
quem se cansou do jogo.
(Asas que agora servem
para esconder feridas
e o revólver de prata
sem bala no tambor.)
Silêncio, ó voz da noite!
ANÚNCIO
Se for a luz,
enxergarei —
porque não tenho alternativa.
Se for o vento,
respirarei
e eventualmente me elevarei
(como uma ave ou uma folha
que o vento arrancou de uma árvore
e há de perder em alguma parte) —
porque não tenho alternativa.
Se for a terra
com os seus compromissos,
pacientemente os cumprirei,
pacientemente os suportarei
(como quem suporta o calor do sol
numa longa viagem
através de um deserto).
Se for distância,
não me queixarei
e antes me porei a caminho,
mesmo que os meus sapatos estejam gastos,
mesmo que os meus olhos estejam baços
e os meus pés cansados
de percorrer distâncias.
Se forem montanhas,
se forem cordilheiras,
escalarei,
com o fardo das horas
sobre os meus ombros,
com a chuva dos dias
sobre a minha face,
com o granizo dos erros
sobre a minha nuca —
porque não tenho alternativa.
Se for a água —
beberei,
como um cachorro de rua.
NOVO SOL
Cansado até o limite do fastio
(até o limite da desolação
que me trepida em lento e distração —
como um atol de que não me desvio);
descendo para o que já foi um rio
e agora é mero fluxo, sem função
de levar minha infirme embarcação
a algum estuário do meu alvedrio,
vou rolando à deriva para quando,
para um longe impossível que se adia
e à audácia escapa de todo arremesso;
de hoje até sempre, e a nada me agarrando,
no enfado do inconcluso, que me esfria.
(E amanhã novo sol, novo começo.)
RENATO SUTTANA (n. 1966)é poeta, escritor, tradutor e professor universitário. É autor de diversos livros de poesia, publicados ao longo dos últimos treze anos. Sua produção mais recente é o livro de poemas Rapinário, lançado em 2015 pela editora Mondrongo. Tem traduzido para o português obras de poetas e prosadores de língua inglesa, espanhola e italiana.