Quantcast
Channel: mallarmargens
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

3 POEMAS INÉDITOS DE ANDRÉ CARAMURU AUBERT

$
0
0






o sonho



eu aqui sob um céu nublado, carregado, pesado, de
quase chuva. diante de mim a areia dura e molhada,
o mar. o mar, cinza-prateado. na rua, atrás, uma van
estaciona. de cadeira de rodas, desce uma mulher. em
volta dela, solícitos (eu deduzo) estão filhos, filhas,
noras, genros, netos. levam-na até o mar. mergulham
o corpo dela, pulam ondas. ela ri, bate palmas, parece feliz.
voando por sobre a cena, da esquerda para a direita, um
casal de gaivotas. ao longe, da direita para a esquerda,
na linha do horizonte, passa um navio. procuro ouvir
os que estão perto de mim, olhando – como eu – de longe.
ouço que o sonho da mulher era conhecer o mar.
e que ela está morrendo.



noite/manhã



à noite (noite quente de primavera), antes de dormir,
eu lia uns japoneses, ryokan, buson e bashō,
e foi deste último o poema que ainda ecoava
em minha mente quando adormeci, que
dizia: “corre a lua / através do céu / as copas
das árvores, embaixo / pingando com a chuva.”
e então eu dormi, não sem antes ouvir a forte
chuva que caiu, boa para embalar nossos
sonhos. e agora cedo você aqui, ao meu lado,
sonolenta, virando pra lá, pra cá, começando
a acordar. já dá para ver, entre as frestas da
janela, o sol surgindo, o azul do céu e a copa
da sibipiruna da praça. e ouvindo claramente
o ping ping preguiçoso dos últimos pingos
pingando do telhado, me fazendo lembrar
dos pingos da chuva do poema de bashō.



nesta tarde escura e fria


Unter grauem Himmel,
unter schwerem Himmel…
[Sob um cinzento céu
sob um pesado céu...]

Robert Walser, “Unter Grauem Himmel”


nesta tarde escura e fria, nesta
tarde que é cinza, que é chuvosa e fria: tudo
parece se encolher, parece até chorar. mas
a chuva na verdade faz bem, eu sei: molha
as plantas, lava as ruas, o chão das praças, dá alívio
aos rios. eu sei disso, eu sei, mas não adianta.
nesta tarde escura e fria, nesta tarde
escura e fria. nesta tarde cinza que é chuvosa e fria.



Foto: Sue Austin, mergulhadora cadeirante inglesa.


*    *    *





André Caramuru Aubert nasceu em São Paulo em 1961. É editor, tradutor e escritor. Já colaborou com publicações como O Estado de S. Paulo e Jornal do Brasil. Atualmente é colunista da revista Trip e colaborador do jornal Rascunho, para o qual mensalmente seleciona e traduz, entre seus preferidos, algum poeta estrangeiro. Publicou, pela editora Patuá, o livro de poemas Outubro/Dezembro e, pela editora Descaminhos, os romances A Vida nas MontanhasA Cultura dos Sambaquis, Cemitérios e, agora em novembro, Só uma estranha luz como pensamento. 






Viewing all articles
Browse latest Browse all 5548

Latest Images

Trending Articles