Exupéry
de quando em quando eu, artífice
vejo-me como o pequeno príncipe
sozinho num mundo só meu
porém sem rosa pra cuidar
por pura sorte, que vá, azar
: de tédio canceroso ela morreu
nisso
basta que pegue meus balões de pássaros
e caia aí na Terra inescrutável?
do que anseio darei de cara com os ralos
sugando-me como saída inevitável
não há raposa a cativar
nem outro personagem a coadjuvar
um avião cairá lá adiante
no piloto verei meu semblante
Uma anedota infinita
desejo escorrendo por tua perna e eu via
mas não queria admitir
que era chegada a hora
de um filho nos unir
mas mesmo me
desfazendo em leite
dali rebento não vingou
só puro azeite
do dito amor brotou
e teu avanço/teu grelo molhado/teu olhar safado/teu esforço
pouco adiantou a que o herdeiro viesse
porém, facilidade das facilidades
não precisou que meu corpo (re)aquecesse –
entrei com a bunda, tu com o pé
e deu pra outro
Se não fosse ela
Sabe,
Acredito muito na dor
Aquela física ou moral
Que corta ou aflige
Tirando o sono, deixando sem chão
Porque é ela que ainda
Faz com que nos sintamos vivos
Parte de algum desiderato maior ou infame
Porque a dor não é neutra
Ela se faz sentir e não vai embora quando
Você quiser
A dor não se convence com as responsabilidades,
Nem com o raiar dos dias que
Pede saúde pra suportá-los
A dor é a única manifestação de
Sermos quem somos
De estar onde estamos
Constatação
vontade ilimitada de sumir
na fresta do asfalto
com a certeza de que amanhã
é o começo de outro começo
– esta presença é tão-só tropeço
acaso da filosofia sã –
então não basta a desculpa
do nascimento involuntário –
é enfrentar e ser enfrentado
ouvir e ser descartado
sem ganhar mais por isso
no caminho de volta
é que vemos o que não levamos
enfileiramos queixas e pedidos
que as horas durassem menos
alegamos nada do que de fato sabemos
mantivemos a farsa
e isso diverte e nutre
enfiados na forca que cabemos
*
deixem-nos a sós
eu e minha bomba
ela não está prestes
a explodir mas contento
a solidão com seus fios
frios cravados na dinamite
ela é minha amiga
e posso usar dela uma só vez
acabando-nos como começamos
num cataclismo de achismos
deixem-nos a sós
é fardo meu ter que carregá-la
de um lado a outro
fazendo mínimo alarido a cada passo
em falso, cada descuido íntimo
beneficiado pela desculpa forjada
a bomba é minha dádiva
mas se deixar ela com raiva
somos só cacos cacos e risadas
deixem-nos a sós
e panfletem que somos amantes
unidos como xifópagos, selados
na imensa dúvida do que faremos, comeremos, buscaremos
a cada gênese de dia
esculachem que nos merecemos
que não há mais chance pra nós
nós não desataremos os nós
e a vida poderá seguir
indiferente a nossos pós
Recurso
fascino
com teus dentes
de brilho fingido
pois quem não alcança
os propósitos maledicentes
atrás de cada um deles
até considera tu boa pessoa
– como se alguém fosse;
o conceito de boa pessoa
é outra criação que fizemos junto
à religião, à política, às ideologias –;
ledo engano, ah ledo engano
entorto e me diminuo
questiono algum criador (também criado)
miserável: por que te fez?
não vê o desperdício da matéria?
– o que se pode dizer
de mim mesmo –
ninguém nada responde ou
responderá – como invenção que é –
assim me confortam os gestos
derivados de instintos intrínsecos
aprimorados com os artesãos do
muay thai:
dou cotovelas-murros, deformo tua fronte
fascino com teus dentes de brilho fingido
ali, rolando no parquê, um a um
tal qual milho e ervilha do molho
rubro vertendo da tua boca blasé
Onde ?
opaco como o sol
teu rosto
camufla-se em aroma de vulgar
pétala
e cu
nauseante verifico em tese tratar-se de miragem
perco noções básicas de coerência
jogo água no rosto já enrugado
que não desprega
insisto em atiçar a memória
ela me foge lenta e tenaz
procuro semelhanças nas fotos já apagadas
da máquina digital
eu mesmo: apaguei-as?
caminha indecisão diante e atrás de mim
rasga tua túnica de verdades
deixa que fique à mercê
de um propósito que confeito
* * *
Andrei Ribas é autor de O Monstro (2007, All Print) e Animais loucos, suspeitos ou lascivos (2013, Multifoco). Escreve resenhas/críticas literárias para os sites Homo Literatus e Amálgama. E-mail. Rede social.